O eco no vidro

Naquela noite, depois de encarar o espelho da sala e não ver nada além do vazio, tive dificuldade para dormir. Não era só o silêncio da casa ou o barulho distante dos carros na avenida. Era a sensação de que havia algo a mais no vidro, como se o espelho escondesse uma presença invisível. Não era apenas a ausência de reflexo. Era quase como se alguém estivesse lá dentro, do outro lado, esperando o momento certo para se revelar.

Fechei os olhos e tentei me convencer de que era só a mente pregando peças. Afinal, os médicos sempre diziam que a mente traumatizada cria ilusões. Mas quando despertei de madrugada, suado, senti que tinha sonhado com aquele instante de novo — a bicicleta, o ônibus, o impacto. Só que, no sonho, quando caí no chão, vi meu reflexo se levantando antes de mim. Como se ele tivesse seguido outro caminho.

Na manhã seguinte, Mio bateu na porta do meu quarto.

— Leo, levanta, você vai se atrasar de novo!

Resmunguei, me levantando com esforço. Passei pela cômoda sem coragem de encarar o espelho. Já era automático: eu evitava, desviava, como quem foge de uma armadilha.

Na escola, David já me esperava na frente do portão. Ele parecia empolgado, como sempre, cheio de novidades.

— Cara, você não acredita! A Alice postou um texto enorme no status ontem, falando de traição, dor e não sei o quê. Acho que é só o começo, ela vai desabafar muito mais ainda.

Balancei a cabeça, tentando prestar atenção, mas ainda sentia o peso do sonho. David percebeu meu desânimo.

— Você não parece bem. Dormiu?

— Mais ou menos.

Ele me olhou de lado. — Você ainda tá naquela de... não se ver?

Assenti, sem vontade de prolongar o assunto.

Durante a aula, enquanto o professor falava sobre literatura, meus olhos se perderam na janela. O reflexo do vidro me chamou atenção. Diferente do espelho, o vidro da janela mostrava alguma coisa. Mas não era eu. Era uma silhueta distorcida, sem rosto definido, como se alguém estivesse colado do outro lado. Pisquei, esfreguei os olhos, e a imagem desapareceu.

O coração disparou. Não falei nada, claro. Quem acreditaria?

No intervalo, Alice passou por nós. O rosto dela carregava marcas de choro, mas a postura era firme. Fingiu não ver Felipe, que conversava animado com os amigos. David fez um gesto para ela, tentando puxar conversa, mas ela apenas acenou, sem parar. Eu a observei, e por um instante, me perguntei se ela também sentia o mesmo vazio que eu.

— Acho que vou falar com ela mais tarde — disse David. — Mas com calma, né? Ela ainda tá machucada.

Fingi que concordei, mas a verdade é que uma parte de mim queria ser o ombro para ela. Talvez porque eu entendia o que era se sentir quebrado.

Quando a aula acabou, caminhei sozinho até a estação. David ficou porque tinha treino. No caminho, passei pela vitrine de uma loja. Meu corpo refletia ali, mas o rosto... não. O vidro mostrava minha roupa, meu movimento, mas o espaço do rosto era como uma sombra borrada.

E então aconteceu: ouvi um sussurro.

— Leo...

Arregalei os olhos, olhei para os lados. Ninguém. Só o barulho dos carros e das pessoas passando. Voltei o olhar para a vitrine. A sombra no lugar do meu rosto se mexeu, como se tivesse vida própria.

Dei um passo para trás, o coração batendo forte. E de repente, a sombra desapareceu.

Corri. Nem olhei para trás. Entrei na estação ofegante, tentando me convencer de que estava ficando louco. “Foi só imaginação, só imaginação”, repetia para mim mesmo.

Mas no fundo eu sabia. Não era.

Em casa, durante o jantar, meus pais falavam sobre coisas do dia a dia. Mio ficou quieta, mexendo na comida. De repente, ela me olhou e disse:

— Leo, você... tem sonhado com o acidente?

A pergunta me pegou desprevenido. Engoli em seco.

— Por quê?

Ela desviou o olhar. — Nada, esquece.

— Fala, Mio.

Ela largou o garfo, hesitando. — É que... eu também sonho, às vezes. E no sonho... você não é você.

O silêncio tomou a mesa. Meus pais mudaram de assunto rapidamente, como se não tivessem ouvido. Mas dentro de mim, a frase de Mio ecoava como um trovão.

Naquela noite, deitado na cama, fechei os olhos e lembrei do reflexo sem rosto, da voz sussurrando meu nome. Era como se o espelho, a vitrine, o vidro da janela fossem apenas portais. E eu... talvez não estivesse inteiro deste lado.

Era apenas o começo.

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