Alice em pedaços

Nos dias seguintes, a escola parecia carregada de um peso invisível. Não era só comigo; todo mundo percebia o silêncio que cercava Alice. Antes, ela era a garota de sorriso fácil, sempre rodeada de amigos, mas agora caminhava pelos corredores como se estivesse dentro de uma bolha. As conversas cessavam quando ela passava, e até quem gostava dela parecia não saber o que dizer.

Eu a observava de longe. Não por curiosidade barata, mas porque via nela algo familiar: a sensação de estar quebrado por dentro. Enquanto todos comentavam a traição de Felipe como se fosse só mais um drama adolescente, eu enxergava algo mais. Talvez porque eu sabia como era carregar uma dor que os outros não entendiam.

No intervalo, Alice estava sentada no banco do pátio, mexendo no celular. David cutucou meu braço.

— É agora, cara. Vou falar com ela.

Ele ajeitou o cabelo e respirou fundo, preparando-se como se fosse entrar num palco. Eu apenas assenti, mas algo dentro de mim incomodava. Quando ele se aproximou, Alice ergueu os olhos. Por um instante, pensei que ela fosse sorrir, mas tudo o que ela fez foi balançar a cabeça e voltar ao celular.

David insistiu. Sentou-se ao lado dela, começou a falar, gesticular. Eu fiquei observando de longe, como se fosse uma cena de teatro em que eu não tinha lugar. Até que, de repente, Alice levantou-se, deixando-o para trás. Passou por mim e, sem olhar para ninguém, entrou no corredor.

David voltou, frustrado.

— Ela tá impossível. Nem quer ouvir.

Fiquei em silêncio. Mas no fundo, senti uma estranha vontade de ir atrás dela.

Mais tarde, quando a aula acabou, a vi sozinha perto do portão, com os olhos vermelhos de choro. David já tinha ido embora para o treino, e algo me empurrou até ela.

— Alice — chamei, hesitante.

Ela levantou o olhar. Por um momento, pensei que me ignoraria, mas então suspirou.

— O que foi, Leo?

— Só... queria saber se você tá bem.

Ela riu sem humor. — Claro, tô ótima. Acabei de virar piada na escola inteira, mas tô ótima.

Não soube o que responder. Então apenas fiquei ao lado dela, em silêncio. Curiosamente, isso pareceu incomodá-la menos do que as palavras de David.

— Todo mundo fala como se fosse simples — disse ela, depois de alguns segundos. — “Ah, segue em frente, esquece.” Mas ninguém entende. Quando você confia em alguém e ele quebra essa confiança, não é só um namoro que acaba. É como se uma parte de você fosse arrancada.

Aquilo me atingiu em cheio. Era quase como se ela tivesse descrito o que eu sentia em relação ao meu reflexo.

— Eu entendo — murmurei.

Ela franziu a testa, surpresa. — Entende?

Assenti. — Não do mesmo jeito, mas... eu também perdi uma parte de mim.

Alice me encarou, tentando decifrar. Por um instante, senti que ela realmente acreditava em mim.

— Você é diferente, Leo. Sempre foi. — Ela desviou o olhar. — Talvez por isso eu consiga falar com você.

Conversamos por alguns minutos. Não muito, mas o suficiente para eu sentir que um fio invisível nos conectava.

Naquela noite, ao chegar em casa, fiquei pensando em suas palavras. “É como se uma parte de você fosse arrancada.” Eu sabia exatamente o que ela queria dizer.

Mas junto com esse pensamento veio outro: David. Ele estava claramente interessado em Alice, e eu não podia ignorar isso. Ele era meu melhor amigo, sempre ao meu lado, mesmo quando eu não merecia. Se eu me aproximasse demais dela, poderia perdê-lo.

No entanto, algo mais forte do que a amizade me puxava em direção a Alice. Não era paixão ainda, mas era empatia, reconhecimento, talvez até sobrevivência.

Na manhã seguinte, quando entrei na sala, Alice já estava lá. Ela me olhou rapidamente, depois voltou a escrever no caderno. Felipe passou por nós, fingindo que nada tinha acontecido, mas eu vi o jeito como Alice apertou a caneta, como se estivesse segurando a raiva dentro de si.

Durante a aula, tentei me concentrar, mas senti algo estranho. O vidro da janela refletia parte da sala, e por um instante vi duas Alices. Uma estava lá, sentada, séria. A outra, no reflexo, chorava desesperadamente.

Engoli em seco. Quando pisquei, a imagem havia sumido.

Era isso que me diferenciava dos outros: eu não só via a dor dela, eu via o reflexo dela — talvez até o que ninguém mais podia ver.

No fim do dia, enquanto caminhávamos até a saída, Alice me disse baixinho:

— Obrigada por ontem. Você não precisou falar nada, e mesmo assim me ajudou.

Sorri de canto, sentindo o peso daquela frase.

Mas no fundo, sabia que estava entrando em um território perigoso. Não era só sobre ela ou sobre mim. Era também sobre David.

E, de algum jeito, sobre o reflexo que parecia observar tudo de longe, como se se divertisse com o jogo.

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