The Boy Who Had No Dream
Não é uma daquelas histórias em que o protagonista se olha no espelho e descobre um olhar perdido, vazio ou misterioso. Na verdade, para mim, espelhos deixaram de existir há algum tempo. Olhar para eles é como encarar uma parede de vidro que não devolve nada. Não é sobre reflexão, é sobre ausência.
Meu nome é Leo André e naquele dia eu estava, mais uma vez, me sentindo fora de lugar. Não apenas fora da sala de aula, dos corredores da escola ou até mesmo do grupo de amigos. Eu estava fora de mim. Desde o acidente de bicicleta, quando um ônibus me fechou na descida perto da estação, minha vida nunca mais voltou a ser a mesma. Lembro apenas do instante em que a roda derrapou, o barulho dos freios, depois o impacto seco. Meu braço direito deslocado, um dente quebrado e um desmaio que me apagou do mundo por alguns minutos.
Acordei em meio ao caos. Pessoas me cercando, vozes perguntando se eu estava vivo. Mais tarde, no hospital, vieram os pontos no rosto. O físico se recuperou, mais ou menos. O problema real ficou na minha mente.
Desde então, quando olho no espelho, não vejo nada. É como se o reflexo tivesse se escondido de mim. Os médicos deram nomes complicados para isso, “transtorno psicogênico”, “alteração de percepção visual”, até coisas ligadas à memória. Já fiz exames, ressonâncias, testes psicológicos, tratamentos. Nenhum resultado. Minha família insiste em soluções espirituais, quase como se quisessem aliviar a própria culpa por terem me deixado ir naquela bicicleta com minha irmã, Mio.
Eu tento sorrir, tento dizer que está tudo bem, mas a verdade é que me sinto inferior a todos. Não é apenas uma cicatriz no rosto, ou o dente que falta. É algo que se instalou dentro de mim, algo que rouba a sensação de existir.
Mas deixemos isso de lado, como costumo dizer.
A vida não para porque você não se enxerga no espelho. E foi nesse ritmo que aquele dia começou, já carregado de pensamentos pesados. Estava na escola quando ouvi alguém me chamar, como se minha mente tivesse se desconectado de novo.
— Leo, Leo... mundo chamado Leo!
Era a voz de David, meu melhor amigo desde o ensino fundamental.
— O que foi, David? — perguntei, tentando soar normal.
Ele se apoiou na carteira ao lado, com aquele jeito meio debochado de sempre.
— Cara, você já soube que a Alice e o Felipe terminaram?
Olhei para frente e percebi que ele tinha razão. Alice estava em silêncio, de braços cruzados, evitando qualquer contato visual com Felipe. E Felipe, por sua vez, encarava a janela como se houvesse um mundo inteiro lá fora, qualquer coisa que não fosse encarar as consequências.
— É claro que dá para perceber — respondi. — Os dois não estão nem olhando um para o outro.
David sorriu, como quem já sabia que eu confirmaria.
— Sim, e pelo que parece ele traiu ela com uma garota da sala ao lado.
A notícia não era exatamente surpreendente. A escola vivia desses rumores, correndo pelos corredores como vento forte. Mas naquele instante, olhando para Alice com a cabeça baixa e para Felipe, tentando parecer indiferente, algo dentro de mim se moveu. Talvez inveja. Não porque eu quisesse estar no lugar dele, mas porque até em seus erros, Felipe parecia existir de verdade. Ele tinha expressão, tinha reflexo no olhar dos outros. Eu, não.
Enquanto os colegas comentavam em voz baixa, eu me desliguei de novo. Pensei no acidente, nos segundos em que minha memória se apagou e no vazio que ficou. Pensei em Mio, que naquele dia só queria andar de bicicleta, e no silêncio dos meus pais sempre que o assunto surgia. Era como se todos carregássemos um segredo do qual ninguém queria falar.
— Você está aí, Leo? — David interrompeu meus pensamentos. — Está com aquela cara de quem viajou pra outro planeta.
Forcei um sorriso.
— Tô aqui, só pensando.
Ele balançou a cabeça, meio desconfiado. Já sabia que “só pensando” significava mergulhado em lembranças que eu não queria compartilhar.
A aula seguiu, monótona. O professor falava sobre fórmulas matemáticas, mas minha mente rodava em círculos. Lembrei do médico dizendo que talvez eu devesse “encontrar um propósito” para reverter o quadro. Propósito... Como se fosse tão simples. Quando você não vê a si mesmo, o que mais pode encontrar?
Na saída, David ainda comentava sobre Alice, sobre como Felipe havia se queimado com todos os amigos e sobre a chance que ele tinha agora de se aproximar dela. Ri sem graça, mas no fundo pensei: será que ele não percebe o quanto ela está machucada?
O mundo parecia seguir em frente: amores que terminavam, traições que vinham à tona, amizades que se fortaleciam. Só eu permanecia preso, olhando para um espelho que não devolvia nada.
E talvez fosse esse o verdadeiro começo da minha história. Não o acidente, não os pontos no rosto, mas a constatação de que eu já não fazia parte do reflexo dos outros. Eu era o garoto que não via o espelho, caminhando entre pessoas que, mesmo em seus dramas, continuavam a se enxergar.
Naquela noite, ao chegar em casa, passei pelo corredor e encarei rapidamente o espelho da sala. Nada. Apenas um vazio que me atravessava. E pela primeira vez, tive a sensação de que esse vazio não era apenas psicológico. Era como se algo, em algum lugar, tivesse arrancado meu reflexo do mundo real.
E quando essa ideia tomou forma, um arrepio percorreu minha espinha. Talvez o que os médicos chamavam de “transtorno” fosse apenas a superfície de algo muito maior. Algo que ainda estava para começar.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 39
Comments