O dia amanheceu cinzento, como se o céu refletisse o peso que Luna carregava. Ela passou horas relendo as cartas de Clara, tentando montar o quebra-cabeça que se formava entre símbolos, memórias e sussurros. O medalhão pendia em seu pescoço, quente como se pulsasse com vida própria.
Decidiu ir à cidade. Precisava encontrar alguém que conhecesse Clara — alguém que pudesse confirmar se tudo aquilo era real ou apenas fruto de uma mente assombrada. Valedourado era pequena, com ruas de paralelepípedo e casas antigas que pareciam resistir ao tempo. Os olhares dos moradores eram discretos, mas Luna sentia o julgamento silencioso em cada esquina.
Na livraria local, encontrou um homem idoso organizando livros empoeirados. Seu nome era Otávio, e ao ouvir o nome “Clara Cardoso”, parou imediatamente.
— Você é da família? — perguntou, com voz baixa e olhos atentos.
Luna hesitou. — Sou sobrinha. Acho.
Otávio suspirou. — Clara era... especial. Sabia coisas que ninguém mais sabia. Falava com a floresta. Escrevia sobre o que vinha antes de nós. Mas depois do desaparecimento... ninguém mais tocou nesse nome.
Luna mostrou o medalhão. Otávio empalideceu.
— Esse símbolo... é antigo. Muito mais antigo que Valedourado. É o selo do pacto. Clara tentou quebrá-lo. Mas não conseguiu. E pagou o preço.
Luna sentiu o chão sumir sob seus pés. — Que pacto?
Otávio olhou para os lados, como se temesse ser ouvido. — Um acordo feito há gerações. Para proteger a cidade. Mas exigia sacrifícios. Clara se recusou. Escondeu você. Fugiu do ritual. E desde então... a floresta não dorme.
De volta ao chalé, Luna encontrou o caderno preto aberto em uma nova página. Desta vez, havia uma frase escrita com tinta vermelha:
> “A promessa foi quebrada. Agora, alguém deve pagar.”
Ela sabia que o tempo estava se esgotando. Que o pacto não havia sido esquecido. E que sua presença ali era mais do que uma busca por respostas — era uma convocação.
Naquela noite, Luna acendeu a lareira. Sentou-se diante do espelho rachado. E esperou.
Porque a escuridão não bate à porta. Ela entra quando sabe que você está pronto.
A lareira crepitava, lançando sombras dançantes pelas paredes do chalé. Luna observava o medalhão em sua mão, sentindo o peso simbólico que ele carregava. A frase no caderno — “A promessa foi quebrada. Agora, alguém deve pagar.” — ecoava em sua mente como um aviso, ou talvez uma sentença.
Ela se lembrava vagamente de Clara. Fragmentos de infância, como flashes de luz em meio à escuridão. Uma voz suave cantando para ela dormir. Um cheiro de lavanda. E um medo constante — não de Clara, mas do que Clara tentava manter longe.
Naquela noite, Luna decidiu revisitar o sótão. A escada rangia sob seus pés, e o ar parecia mais frio do que antes. Lá em cima, encontrou uma caixa que não havia notado antes. Dentro, havia fotos antigas, recortes de jornal e um diário — o diário de Clara.
As primeiras páginas eram comuns: relatos do dia a dia, descrições da cidade, observações sobre Luna ainda bebê. Mas conforme avançava, o tom mudava. Clara falava sobre vozes que vinham da floresta, sobre sonhos que se repetiam, e sobre um grupo que se reunia em segredo — os Guardadores do Véu.
> “Eles dizem que o pacto protege Valedourado. Mas a que custo? Uma vida por geração. Um sacrifício para manter o véu entre os mundos intacto. Eu não posso permitir que Luna seja a próxima.”
Luna fechou o diário com mãos trêmulas. Clara havia tentado impedir o ritual. Havia fugido, escondido Luna, quebrado a promessa feita por seus antepassados. E agora, o preço dessa quebra estava sendo cobrado.
De repente, um som. Um sussurro vindo do espelho rachado. Luna se aproximou. A superfície refletia não o sótão, mas a clareira do círculo de pedra. E no centro, uma figura encapuzada a esperava.
> “O tempo está se esgotando. Escolha: fugir ou lembrar.”
Luna desceu do sótão com o diário em mãos. Ela sabia que não podia fugir. Não mais. A promessa havia sido quebrada, mas talvez ainda houvesse tempo para reescrevê-la.
Naquela noite, ela acendeu uma vela, abriu o caderno preto e escreveu pela primeira vez:
> “Eu estou pronta. Que a floresta fale.”
Luna passou a madrugada em claro, relendo cada página do diário de Clara. As palavras pareciam pulsar com vida própria, como se o papel guardasse não apenas memórias, mas advertências. Havia menções a um nome que Luna nunca ouvira antes: Eloísa, descrita como “a última que tentou romper o ciclo”.
> “Eloísa desapareceu na noite do solstício. Dizem que foi levada pela névoa. Mas eu sei que ela escolheu enfrentar o Véu.”
A névoa. Luna se lembrava dela. Desde que chegara a Valedourado, ela surgia sempre ao entardecer, rastejando pela floresta como dedos silenciosos. E naquela noite, ela estava mais densa do que nunca.
Guiada por uma intuição que não sabia de onde vinha, Luna seguiu até a clareira do círculo de pedra. O ar parecia vibrar, como se o tempo ali estivesse suspenso. No centro, havia algo novo: uma pequena caixa de madeira, coberta por musgo.
Dentro, encontrou uma carta escrita à mão. A caligrafia era firme, mas antiga:
> “Se você está lendo isso, é porque a promessa foi quebrada. Mas nem tudo está perdido. Há um caminho. Ele exige coragem, sacrifício e verdade. Vá até o Olho da Serpente antes da próxima lua cheia. Leve o medalhão. E não vá sozinha.”
Luna sentiu um arrepio. O Olho da Serpente era uma formação rochosa na encosta norte da floresta, evitada por todos desde que um garoto desaparecera ali anos atrás. Mas agora, parecia ser o único lugar onde respostas poderiam ser encontradas.
Ela voltou ao chalé e, pela primeira vez, ligou para alguém: Mateus, o filho da bibliotecária, que sempre falava sobre lendas locais e parecia saber mais do que deixava transparecer.
— Você encontrou a carta, não foi? — ele disse, antes mesmo que Luna explicasse.
Ela congelou.
— Como você sabe?
— Porque eu também recebi uma. Há dois anos. Mas eu não fui. E desde então... eu escuto coisas. Vejo coisas. Acho que está na hora de irmos juntos.
Luna olhou para o medalhão em sua mão. A promessa havia sido quebrada. Mas talvez, com Mateus ao seu lado, ela pudesse descobrir como reconstruí-la — ou destruí-la de vez.
Naquela noite, Luna e Mateus se encontraram na trilha que levava ao chalé. Ele trazia consigo um caderno antigo, coberto por símbolos semelhantes aos do medalhão. Disse que o encontrara escondido na biblioteca da cidade, atrás de uma estante que ninguém mexia há anos.
— Clara não era a única que tentou romper o ciclo — ele disse, com a voz baixa. — Há registros de outros. Todos desapareceram. Mas deixaram pistas.
Folhearam o caderno juntos. Havia mapas, relatos de encontros com figuras encapuzadas, e uma lista de nomes riscados — pessoas que haviam participado do pacto original. No final, uma anotação em letras tremidas:
> “O Véu enfraquece quando o elo retorna. E o elo sempre retorna.”
Luna sentiu um nó na garganta. Ela era o elo. A criança que Clara tentou proteger. A peça que faltava para que o ritual fosse completo — ou desfeito.
Mateus apontou para um símbolo desenhado no canto da página. Era o mesmo que aparecia no medalhão, mas com uma diferença: uma rachadura atravessava o centro.
— Isso significa que o pacto pode ser quebrado — ele disse. — Mas não sem consequências.
Do lado de fora, a névoa começava a se formar. Espessa, silenciosa, como se a floresta estivesse se preparando para algo. Luna olhou pela janela e viu as pedras do círculo brilhando levemente, como se pulsassem com energia.
Ela sabia que a próxima noite seria decisiva. Que o Olho da Serpente guardava mais do que respostas — guardava escolhas.
Antes de dormir, Luna escreveu no caderno preto:
> “A promessa foi quebrada. Mas eu não fui. Eu estou aqui. E eu vou lembrar.”
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Atualizado até capítulo 26
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