O sol da manhã mal atravessava as cortinas pesadas do chalé. Luna acordou com a sensação de que não havia dormido — como se tivesse passado a noite inteira em vigília, mesmo sem lembrar. O caderno preto ainda estava ao seu lado, e a lareira, agora apagada, deixava um leve cheiro de madeira queimada no ar.
Ela se levantou, vestiu um casaco grosso e saiu para explorar os arredores. O chalé ficava no alto de uma colina coberta por vegetação densa. A trilha que levava à cidade era estreita, ladeada por árvores antigas que pareciam observá-la em silêncio. O ar era fresco, mas carregado — como se cada respiração trouxesse consigo fragmentos de histórias não contadas.
Ao contornar a lateral da casa, Luna encontrou uma pequena construção de pedra, coberta por musgo e parcialmente escondida por arbustos. Parecia um antigo depósito ou talvez uma adega. A porta estava entreaberta, e a escuridão lá dentro parecia viva.
Ela hesitou, mas a curiosidade venceu. Empurrou a porta com cuidado e entrou. O cheiro era forte — terra úmida, madeira apodrecida e algo metálico. No fundo, havia uma estante com objetos cobertos por panos. Luna puxou um deles e revelou uma caixa de madeira entalhada com símbolos que ela não reconhecia.
Ao abrir a caixa, encontrou uma coleção de cartas amareladas, todas endereçadas a alguém chamado Clara Cardoso. O sobrenome chamou sua atenção. Cardoso. O mesmo que o dela.
Folheou uma das cartas. A caligrafia era firme, elegante, e falava sobre sonhos recorrentes, vozes na floresta e uma presença que rondava o chalé. Clara parecia estar perdendo a sanidade — ou descobrindo algo que ninguém mais ousava ver.
> “Eles vêm à noite. Não querem que eu fale. Mas a casa escuta. A casa lembra.”
Luna sentiu um arrepio. Aquilo não era coincidência. Havia uma ligação entre ela e Clara. Talvez familiar. Talvez espiritual. Talvez algo que ultrapassava o tempo.
Ao sair da construção, o céu estava encoberto. Um corvo pousou no corrimão da varanda e a encarou com olhos escuros e fixos. Luna não desviou o olhar. Sentia que, de alguma forma, aquele animal sabia mais do que parecia.
De volta ao chalé, ela colocou a caixa sobre a mesa e começou a organizar as cartas. Precisava entender quem era Clara. E por que tudo parecia girar em torno daquele lugar.
Na última carta, havia uma frase escrita em letras tremidas:
> “Se você está lendo isso, é porque também ouviu o chamado.”
Luna fechou os olhos. Sim. Ela ouvira. E agora, não havia como voltar atrás.
Luna passou horas lendo as cartas de Clara Cardoso. Cada uma parecia escrita em momentos de desespero, como se Clara estivesse tentando alertar alguém — talvez ela mesma. Havia menções a “figuras na floresta”, “sons que não pertencem ao mundo dos vivos” e uma constante sensação de ser observada.
Mas uma carta em especial chamou sua atenção. Era mais recente, com a tinta ainda viva, como se tivesse sido escrita há poucos dias. Nela, Clara dizia:
> “A menina chegou. Ela não sabe quem é. Mas a casa sabe. A floresta também.”
Luna sentiu o sangue gelar. Aquilo não podia ser coincidência. Ela era a única hóspede do chalé. E se Clara ainda estivesse viva? Ou... se alguém estivesse escrevendo em nome dela?
Decidida a entender mais, Luna saiu novamente, desta vez seguindo uma trilha atrás do chalé que levava à parte mais densa da floresta. O caminho era estreito, coberto por folhas secas e galhos quebrados. A cada passo, o silêncio parecia mais pesado, como se o próprio ar estivesse em suspenso.
No meio da trilha, encontrou uma estrutura de pedra coberta por raízes — uma espécie de altar antigo, com símbolos entalhados semelhantes aos da caixa de cartas. No centro, havia uma vela apagada e um pequeno espelho rachado.
Ao se aproximar, Luna viu seu reflexo distorcido. Mas por um breve momento, o espelho mostrou outra imagem: uma menina de cabelos escuros, com os olhos cheios de lágrimas, estendendo a mão como se pedisse ajuda.
Luna recuou, ofegante. O espelho voltou ao normal. Mas a sensação de que algo — ou alguém — tentava se comunicar com ela era inegável.
De volta ao chalé, ela anotou tudo no caderno preto. Precisava registrar cada detalhe, cada símbolo, cada sensação. Sabia que estava entrando em algo maior do que imaginava. E que o tempo para entender tudo estava se esgotando.
Na última página do caderno, uma nova frase havia surgido. Ela não lembrava de tê-la escrito:
> “A escuridão não quer respostas. Ela quer companhia.”
Luna fechou o caderno com força. A noite se aproximava. E com ela, os sussurros voltariam.
A noite caiu como um véu espesso sobre o chalé. Luna acendeu todas as luzes, mas a claridade parecia impotente diante da escuridão que se acumulava do lado de fora. O vento sussurrava entre as árvores, e cada estalo da madeira parecia um passo vindo do andar de cima — mesmo que ela soubesse que estava sozinha.
Ou achava que estava.
Ela voltou à caixa de cartas. Havia uma última, escondida sob o fundo falso. Diferente das outras, essa estava escrita em uma caligrafia firme, quase agressiva:
> “A casa não esquece. Ela guarda. Ela repete.”
Luna sentiu um arrepio na espinha. A frase parecia ecoar dentro dela, como se tivesse sido escrita para alguém que já havia vivido ali antes — alguém como ela.
Decidida a entender o que estava acontecendo, Luna subiu ao sótão. A porta rangeu como se não fosse aberta há décadas. Lá dentro, o ar era pesado, e o cheiro de mofo misturava-se com algo mais... metálico.
No canto, havia um espelho coberto por um lençol. Quando Luna o puxou, viu não seu reflexo, mas o de uma mulher de cabelos escuros e olhos profundos — os mesmos da menina que aparecera no espelho da floresta. A mulher sorriu. Mas o sorriso não era acolhedor. Era um aviso.
Luna recuou, tropeçando em uma caixa. Dentro dela, havia recortes de jornal antigos. Um deles trazia a manchete:
“Desaparecimento misterioso no Chalé da Colina — Jovem some sem deixar vestígios.”
A foto mostrava Clara Cardoso. Mas o que chocou Luna foi o detalhe no canto da imagem: uma figura borrada, parada na janela do chalé. E Luna reconheceu o casaco. Era o mesmo que ela encontrara pendurado no quarto de hóspedes.
O chalé não era apenas cenário de uma história antiga. Ele era parte dela. E Luna, sem saber, estava reencenando cada passo.
Ao descer do sótão, encontrou o caderno preto aberto sobre a mesa. Uma nova frase havia surgido, escrita com a mesma caligrafia da carta agressiva:
> “Você voltou. Agora, termine o que começou.”
Luna fechou o caderno com mãos trêmulas. O silêncio da casa parecia esperar por sua próxima decisão. E ela sabia: o capítulo seguinte não seria apenas lido. Seria vivido.
A madrugada avançava, e Luna não conseguia dormir. O caderno preto permanecia sobre a mesa, como se a frase escrita ali pulsasse com vida própria. “Você voltou. Agora, termine o que começou.” Mas o que ela havia começado?
Ela decidiu investigar o porão — o único lugar da casa que ainda não havia explorado. A porta era baixa, escondida atrás de uma estante. Quando a abriu, um cheiro de terra úmida e ferro velho invadiu o ar. Desceu os degraus com uma lanterna em mãos, cada passo ecoando como se o porão fosse maior do que parecia.
Lá embaixo, encontrou uma parede coberta por símbolos entalhados, semelhantes aos do altar na floresta. No centro, havia um espelho quebrado e uma cadeira de madeira, como se alguém tivesse passado horas ali... esperando.
Ao se aproximar do espelho, Luna viu algo que a fez recuar: não era seu reflexo. Era Clara. Mas não como nas fotos. Clara estava pálida, com os olhos fundos e um sorriso triste. Ela levantou a mão, tocando o vidro do outro lado.
Luna, instintivamente, fez o mesmo. E naquele instante, uma voz sussurrou em seu ouvido — não vinda do espelho, mas de dentro dela:
> “Você é o elo. A casa lembra. A floresta guarda. Mas só você pode libertar.”
A luz da lanterna piscou. O espelho se apagou. Clara desapareceu.
Luna subiu correndo, o coração disparado. Ao chegar à sala, encontrou o caderno aberto em uma nova página. Desta vez, não era uma frase. Era um mapa. Um caminho que começava no chalé, atravessava a floresta e terminava em um ponto marcado com um símbolo circular.
Ela sabia que o próximo passo seria seguir aquele mapa. Mas algo dentro dela dizia que, ao fazê-lo, não haveria volta.
O chalé estava em silêncio. Mas a floresta, lá fora, começava a chamar.
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Atualizado até capítulo 26
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