Capítulo 5

O Costa Azul estava com aquele ar de manhã que só Salvador tem: umidade no peito, cheiro de suor do mar misturado ao pó da rua, e o rádio da cozinha tocando em quanto Juliana cantava uma fita cassete com alguma música que Safira não reconheceu direito porque a cabeça dela estava em outro lugar. Ela desceu devagar, o cabelo preso num coque torto, pijama já trocado por uma camiseta velha da escola, já que a nova a escola ainda não deu e uma calça jeans. Juliana mexia o café e estendia o pão na chapa.

— Levanta, minha filha — disse a mãe com a voz macia. — Não quero você chegando atrasada no Colégio.

— Tô indo — murmurou Safira, agarrando a maçã que ficou na fruteira. O estômago apertado não tinha nada a ver com fome. Era aquela mistura de costume e palavra atravessada que vinha com o começo de cada semestre.

Juliana arrumou a bolsa, pegou a chave do carro. Era sempre ela quem levava Safira, quando não conseguia levar ela quem levava era seu irmão mais velho Davi — a distância até o colégio não era curta, e o trânsito da cidade castigava quem saía tarde. No banco do passageiro, Safira fingiu ler uma revista velha; por fora, tudo casual, por dentro, uma colherada de inquietude.

— Escuta uma coisa — disse Juliana enquanto fechava a porta do prédio — só tenta este ano não provocar tumulto com o Apolo, tá? Você sabe como esses atritos só dão dor de cabeça.

Safira revirou os olhos, com o ar de quem já conhecia o sermão. Afinal Apolo era professor dela desde a antiga 5° série, que hoje em dia é o 6° ano e desde sempre ela não foi com a cara dele, mas tinha alguma coisa que estava acontecendo que nem ela estava percebendo.

— Prometo tentar... Mas não posso prometer ser boazinha se ele provocar.

Juliana sorriu de leve, como quem aceita o risco. O carro freou na entrada do colégio, o pátio fervilhava de alunos trocando férias por rumores e lembranças. A mãe lhe deu um beijo na bochecha.

— Vai ser um bom ano — disse Juliana, com a convicção de quem quer acreditar. — Se precisar, manda a secretária me liga.

Safira caminhou com as amigas, com a bolsa batendo no lado, o mundo escolar como sempre: porta, corredor, carteira. Thai e Vini apareceram já com as piadas prontas. O ano novo cheirava a fichas trocadas e agendas novas — e ao mesmo tempo tudo ali já tinha endereço nas mesmas mágoas de sempre.

Quando Apolo entrou, a sala ficou com uma clareza diferente. Não havia novidade no rosto dele — quem o conhecia sabia que a camisa pólo bem passada e a calma com que ajeitava os livros eram rotina — mas havia uma autoridade mansa que fazia as conversas murcharem. Ele não era professor novo; Apolo já dava aula desde que Safira era menor, acompanhara sua passagem pela escola. Ainda assim, ali, diante da classe inteira, parecia que ele conseguia fazer o tempo se ajeitar.

— Bom dia — disse ele. A voz era firme, sem pressa. — Vamos começar. Este ano, quero mais empenho. Eu conheço muitos de vocês desde o sexto ano; sei do que cada um é capaz. Quero ver diferença. Mudança real.

Algumas cadeiras mexeram, alguém fez uma piada baixa, mas a intenção dele ficou no ar. Havia uma indireta naquelas palavras — não algo dito somente para Safira, mas com uma direção que lhe queimou por dentro. Ela apertou o lápis contra a mão, sentiu a presença dele como não sentia há tempos. Não era raiva simples; era um prometido equilíbrio entre interesse e contenção que a desconcertou.

— Para abrir a aula — continuou Apolo, surpreendendo a turma — eu vou propor uma dinâmica rápida. Não sou professor de português, mas acredito que expressão é ferramenta de pensamento. Quero que cada um escreva algo curto: um poema, um chamado de música, um trecho que represente algo que vocês sintam. Pode ser uma linha, uma frase. O objetivo é ouvir. Sensibilidade também é disciplina.

Um burburinho percorreu a sala — alguns reclamaram, outros sorriram, e Safira, contrariada, pegou papel e caneta com a rigidez do que já sabia sentir. Escrever não era natural para ela; era um gesto quase inconveniente. Ainda assim, as palavras surgiram como se saíssem de um recanto que ela raramente visitava.

Ela rabiscaria algo que nem sabia porque saía da garganta:

“Finjo que não quero ser vista, mas meu silêncio é só um jeito de gritar o que não sei dizer.”

Ela não pensou em ninguém ao escrever. Era uma frase contra ela mesma — uma confissão curta que lhe pareceu óbvia quando a colocou no papel. Dobrou a folha e esperou, como se tivesse escondido algo que poderia explodir.

Apolo passou entre as carteiras recolhendo as folhas. Ao chegar à de Safira, segurou a ponta e, discreto, leu. Havia algo ali que o fez franzir o cenho, não de escândalo, mas de curiosidade. Guardou a folha no bolso de dentro do blazer com a promessa de ler com calma depois. Ele falou, com a calma de sempre:

— Muito bom. Guardem; eu vou ler com atenção.

A aula continuou. Em seguida, ele escreveu um problema no quadro — uma questão de física simples, mas com camadas, envolvendo cálculo de velocidade e uma pitada de raciocínio lógico. Pediu para um voluntário subir ao quadro. Ninguém se ofereceu de imediato, então apareceu a provocação normal: um aluno fez gracejo, outros olharam para baixo.

Apolo olhou por alguns segundos, e sua escolha, quando veio, não foi a mais óbvia. Ele chamou alguém que considerava atento — e, em seguida, disse:

— Depois desse exercício, quero alguém para apresentar a solução no quadro. Vou escolher eu mesmo. — O silêncio se alongou. — Safira, venha até o quadro.

O nome soou na sala como um estalo. Safira sentiu todas as cabeças voltarem-se para ela; o calor subiu ao rosto, mistura de irritação e adrenalina. Ela saiu do lugar com a postura reta; no caminho, seus dedos suavam tanto que quase rasgaram a folha que tinha escrito. No quadro, a questão a fez respirar fundo; os números não tremiam tanto quanto o olhar dele que a observava — não por cobrança, mas por uma busca contida.

Resolveu, falou a solução, e na resposta final houve um lampejo de reconhecimento no rosto do professor. Não era elogio escandaloso. Era um olhar que dizia: “Você sabe mais do que mostra.” E isso a deixou sem saber se queria rir ou vomitar de tanta vergonha, mas ela asentiu com a cabeça.

Quando voltou ao lugar, o intervalo bateu. Na sala Safira ficou com os amigos, Safira, Thai e Vini abriram a merenda — sanduíches embrulhados em papel, suco, conversas leves. Apolo ficou na mesa frente à sala, revendo algumas folhas. Em um momento em que a turma brincava, ele ergueu a mão e, sem que ninguém notasse, passou os olhos por uma das páginas que tinha guardado; a folha de Safira estava lá, visível pela ponta dobrada. Ele leu por cima, os olhos deslizando. E então, por cima do papel, levantou o olhar e encontrou o dela ao longe, meio perdidos no gesto de abrir uma embalagem.

A sensação foi estranha. Ele não demonstrou nada. Só olhou, um segundo a mais do que deveria, como quem tenta entender uma peça fora do contexto e que, no entanto, faz sentido em alguma nota oculta. Safira percebeu. Sentiu a gravidade daquele olhar. O peito apertou. Levantou-se de repente.

— Vou no banheiro — murmurou, sem encarar os amigos.

No corredor, o corredor que cheirava a giz e suor, Safira tropeçou nas próprias questões. Foi ao banheiro e ficou em frente ao espelho um tempo demais, tirando o coque e alisando o cabelo como se pudesse ajeitar também as ideias. Pensou na frase que escreveu, pensou no olhar dele, e sentiu que havia algo aqui que não tinha nome. Não era amor; sabê-lo era complexo demais. Era apenas um buraco de curiosidade que crescia silencioso.

Andou pelo pátio, deu a volta pela quadra, viu meninas rindo e um grupo discutindo futebol. Os minutos escorregaram. Apesar da inquietude, quando o sinal tocou, voltou à sala — pegou a mochila, juntou as amigas e saiu sem muito alarde. Não contou nada a Thai ou Vini sobre o olhar. Guardou o incômodo para si, como quem guarda uma carta que não se atreve a abrir.

No caminho de volta para o carro, Juliana a esperava com o vidro parado, o rosto preocupado mas aliviado de vê-la. — E então? — perguntou a mãe. — Foi um dia tranquilo?

— Foi. — Safira deu de ombros. — Aulas, gente... tudo normal.

Juliana sorriu, evitando perguntas que a deixassem na defensiva. — Você cresceu, Safira. Só tenta não se prender em rusgas, tá? A vida não merece tanto tumulto.

Em casa, o apartamento estava com o cheiro de arroz e feijão pronto. Davi, que cursava o último ano da faculdade, estava espalhado com livros e cadernos no sofá quando Safira largou a mochila.

— E aí, meu futuro engenheiro — cutucou ela, jogando-se ao lado dele. — Como anda a faculdade?

Davi, cansado mas feliz, falou sobre cálculo, um estágio que ia tentar arrumar, aulas noturnas e uns professores chatos. Contou como a rotina apertava, as contas para pagar, a vontade de fazer um curso técnico junto. Safira ouviu com atenção, riu das piadas dele, deu ideias para o currículo, perguntou sobre os professores e sobre os horários. Eles conversaram do modo fácil de irmãos que se protegem: sem invadir o espaço do outro para assuntos que machucam.

Safira evitou falar sobre a escola naquele dia e sobre o professor — não era hora de confessar confusões de olhar e poemas. Preferiu ouvir Davi, pôr em dia os detalhes da vida dele e, por um tempo, desligar o furacão que tinha dentro do peito.

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Bé tít

Bé tít

Essa história é incrível! 📖

2025-09-04

1

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