O sol mal havia nascido quando Helena acordou. A noite anterior parecia um sonho — ou um pesadelo. Ela se levantou devagar, como se cada movimento exigisse mais força do que o corpo podia oferecer.
Na cozinha, Clara já estava acordada, sentada à mesa com uma xícara de chá nas mãos.
— Dormiu bem? — perguntou com um sorriso gentil.
Helena hesitou.
— Dormi... o suficiente.
Clara observou a sobrinha com olhos atentos. Sabia que algo havia mudado. Sentia no ar, no jeito como Helena evitava olhar pela janela, como se temesse ver alguém ali.
— Ele voltou, não é? — Clara disse, sem rodeios.
Helena parou de mexer o café.
— Como você sabe?
— Porque seus olhos estão diferentes. Estão feridos. E só uma pessoa tem esse poder sobre você.
Helena sentou-se à mesa, encarando a xícara como se ela pudesse responder às perguntas que a mente não conseguia formular.
— Eu não sei o que fazer, tia. Ele apareceu como se nunca tivesse partido. Disse que me deixou pra me proteger. Que Lucien o ameaçou.
Clara suspirou.
— Lucien sempre teve um jeito de se infiltrar onde não devia. Mas Damon... ele nunca foi simples. E o amor dele por você nunca foi leve.
Helena assentiu, sentindo o peso da verdade.
— Ele quer me ver hoje. No café da esquina.
— E você vai?
— Eu não sei. Parte de mim quer respostas. Outra parte quer distância.
Clara tocou a mão da sobrinha com delicadeza.
— Às vezes, os olhos que mais nos ferem são os que mais nos enxergam. E Damon sempre te viu como ninguém.
Helena engoliu em seco. Sabia que Clara estava certa. Mas também sabia que se deixasse Damon se aproximar de novo, não haveria volta.
Horas depois, já vestida e pronta, Helena caminhava pelas ruas de Montclair. O café da esquina estava à vista. Pequeno, aconchegante, com mesas de madeira e cheiro de pão fresco.
Ela parou diante da porta. Respirou fundo. E entrou.
Damon já estava lá.
Sentado à mesa do fundo, com uma xícara de café nas mãos e os olhos fixos nela. Olhos que feriam. Olhos que curavam. Olhos que ela nunca conseguiu esquecer.
— Você veio — ele disse, com um sorriso contido.
— Eu vim — ela respondeu, sentando-se à frente dele. — Mas não sei se foi a melhor escolha.
Damon inclinou-se levemente.
— Às vezes, a melhor escolha é justamente aquela que mais nos assusta.
Helena o encarou. E naquele instante, soube que o jogo havia recomeçado.
Mas desta vez, ela não seria apenas uma peça.
Ela seria quem escolheria o final.
Helena envolveu a xícara com as mãos, tentando encontrar calor na porcelana. Mas o frio que sentia vinha de dentro. Damon a observava com atenção, como se cada gesto dela fosse uma pista, uma chave para algo que ele ainda não compreendia.
— Você mudou — ele disse, quebrando o silêncio.
— Todos mudam, Damon. Principalmente depois de serem abandonados.
Ele assentiu, sem se defender.
— Eu não vim aqui pra justificar o que fiz. Só quero que você saiba que... não houve um dia em que eu não pensasse em você.
Helena riu, mas o som saiu amargo.
— Pensar não é o mesmo que estar. E você escolheu não estar.
Damon se inclinou para frente, os olhos mais intensos do que nunca.
— Eu escolhi te proteger. Lucien me deu uma escolha: ou eu sumia, ou ele faria você pagar por tudo que eu era.
— E você acreditou nele?
— Eu conheço Lucien. Sei do que ele é capaz. E você não fazia ideia do que estava envolvida.
Helena apertou os lábios, tentando conter a raiva.
— Você acha que me proteger significa me deixar sozinha? Me fazer acreditar que fui descartada?
— Eu achava que o tempo te curaria. Que você seguiria em frente.
Ela o encarou, os olhos marejados.
— Eu segui. Mas não curei. E agora você volta, como se pudesse costurar tudo que rasgou.
Damon abaixou o olhar, como se carregasse o peso de cada palavra dela.
— Eu não quero costurar. Quero começar de novo. Se você permitir.
Helena respirou fundo. O café ao redor parecia desaparecer. Só existia ele. E ela. E tudo que ainda doía.
— E se eu não quiser começar de novo?
— Então eu vou embora. Mas dessa vez, com a verdade dita. E com a esperança de que, um dia, você entenda que tudo que fiz... foi por amor.
Ela ficou em silêncio. O coração batia alto demais. As mãos tremiam. Mas os olhos... os olhos dela estavam firmes.
— Você tem uma chance, Damon. Uma. E ela começa agora. Me conta tudo. Sem mentiras. Sem omissões.
Damon assentiu. E então, com a voz baixa e firme, começou a revelar o que realmente aconteceu cinco anos atrás.
E Helena soube que aquele café seria o início de algo maior — algo que poderia curá-la ou destruí-la de vez.
Damon passou a mão pelos cabelos, como se tentasse organizar os pensamentos antes de abrir a porta do passado.
— Na noite em que desapareci, eu estava decidido a te contar tudo. Sobre mim. Sobre o que eu sou. Sobre o que carrego.
Helena franziu o cenho.
— O que você carrega?
Ele olhou para ela com uma intensidade que a fez estremecer.
— Uma maldição. Literalmente.
Ela riu, nervosa.
— Damon, isso não é um livro de fantasia.
— Não — ele disse, sério. — Mas minha vida tem sido uma sequência de eventos que ninguém explicaria com lógica. E tudo começou muito antes de você me conhecer.
Helena se calou. Algo na expressão dele dizia que ele não estava brincando. Que aquilo era real — ou, pelo menos, real para ele.
— Lucien sabia. Ele descobriu. E usou isso contra mim. Disse que se eu não sumisse, revelaria tudo. Que te colocaria em perigo. Que te faria sofrer.
— E você acreditou?
— Eu vi do que ele era capaz. Ele não ameaçou só você. Ele ameaçou Clara. Beatriz. Até Eduardo.
Helena sentiu um arrepio subir pela espinha.
— Eduardo? Seu irmão?
Damon assentiu.
— Ele tentou me ajudar. Mas Lucien é mais poderoso do que parece. E mais cruel.
Helena apertou a xícara com força.
— Então você fugiu. E me deixou no escuro.
— Sim. Porque se você soubesse... talvez tentasse me salvar. E isso te destruiria.
Ela se levantou, o coração acelerado.
— Você não me deu escolha, Damon. Você decidiu por mim. E isso... isso é o que mais dói.
Damon se levantou também, os olhos fixos nos dela.
— Eu sei. E é por isso que estou aqui. Pra te dar o que te neguei: a verdade. E a escolha.
Helena respirou fundo. Lá fora, o céu começava a se nublar. Como se o universo refletisse o turbilhão dentro dela.
— Então me diz... o que você é?
Damon hesitou. E então, com a voz baixa, quase como um segredo roubado do tempo, ele respondeu:
— Eu não sou só um homem, Helena. Sou algo que não deveria existir. E se você quiser saber tudo... vai precisar estar pronta pra ver o que ninguém mais viu.
Ela o encarou. E naquele instante, soube que a ferida que ele deixara não era apenas emocional.
Era sobrenatural.
E que a outra escolha estava apenas começando.
Helena permaneceu em pé, diante de Damon, como se a revelação tivesse suspendido o tempo. A frase dele ecoava em sua mente: “Sou algo que não deveria existir.”
— Você está falando de quê exatamente? — ela perguntou, tentando manter a racionalidade. — De magia? De maldição? De quê?
Damon se aproximou, mas não tocou. Seus olhos estavam mais escuros agora, como se uma sombra tivesse atravessado sua alma.
— Eu não envelheço, Helena. Não como os outros. E há noites em que... eu não sou eu. Há algo dentro de mim que desperta. Algo que não posso controlar.
Ela recuou um passo, o coração acelerado.
— Você está dizendo que é... o quê? Um monstro?
— Não. Mas também não sou só humano. Não completamente.
Helena sentiu o chão sob seus pés se tornar instável. Tudo nela gritava para sair dali, fugir, negar. Mas ela ficou. Porque, apesar do medo, havia algo mais forte: a necessidade de entender.
— E isso tem a ver com Lucien?
Damon assentiu.
— Ele pertence à mesma linhagem. Mas escolheu o lado sombrio. Ele se alimenta da dor dos outros. E quando percebeu que eu podia resistir... tentou me destruir por dentro.
Helena se sentou novamente, as mãos trêmulas.
— E eu? Onde eu entro nisso?
Damon se ajoelhou diante dela, os olhos fixos nos dela.
— Você é a única coisa que me manteve humano. Que me fez lutar contra o que sou. Mas amar você... também me torna vulnerável. E Lucien sabe disso.
Ela respirou fundo, tentando processar tudo.
— Então você voltou... pra me proteger?
— Voltei porque não consigo mais viver sem saber se você ainda me vê como antes. Se ainda existe espaço pra mim no seu mundo.
Helena olhou para ele. E naquele instante, não viu o monstro. Não viu o mistério. Viu o homem. O mesmo que a fez sorrir quando tudo parecia perdido. O mesmo que a deixou em pedaços — mas que agora tentava juntar cada fragmento.
— Eu não sei o que você é, Damon. Mas sei o que você foi pra mim. E talvez... eu precise descobrir o que você ainda pode ser.
Damon sorriu. Um sorriso pequeno, mas verdadeiro.
— Então me deixa te mostrar. Um dia de cada vez.
Ela assentiu, com os olhos marejados.
— Um dia de cada vez.
E assim, entre verdades impossíveis e sentimentos incontroláveis, Helena deu o primeiro passo rumo ao desconhecido. Porque às vezes, os olhos que mais ferem... são os únicos que enxergam quem você realmente é.
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Atualizado até capítulo 21
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