A Criatura do Porão

caso 5 Parte 1

Ano: 2009

Local: Northumberland, Inglaterra

O vento soprava áspero sobre os campos ondulados do norte quando o telefone fixo tocou no escritório dos Moore. Nathan estendeu a mão, ainda com uma caneca de chá quente, e atendeu. Do outro lado, a voz cansada de um pároco que ele já conhecia por cartas, mas nunca em carne e osso:

> — Sr. Moore… Sra. Moore… aqui é o padre Adrian Cartwright.

Preciso de vocês no mosteiro de St. Alban. Coisas foram… acordadas.

Há homens desaparecidos. E o porão… o porão foi aberto.

Leonor levantou os olhos do caderno. Ela reconheceu o nome de imediato: St. Alban, um mosteiro do século XIII, fechado ao público por décadas e agora em lenta restauração. “Umbroso demais para turismo, antigo demais para esquecer”, anotara certa vez numa pesquisa.

Duas horas depois, o carro deles atravessava uma estrada estreita, engolida por névoa baixa. O mosteiro surgiu do nada — um bloco de pedra escurecida, janelas estreitas, gárgulas gastas pela chuva. O sino estava parado, mas havia no ar um som que parecia um zumbido, como se o próprio edifício respirasse.

O padre Adrian esperava na entrada, a batina batendo no vento. Era mais novo do que Nathan imaginava, mas os olhos, fundos, pareciam de quem carregava o dobro da idade.

— Não deveriam ter mexido ali embaixo — disse sem cumprimentos, conduzindo-os pelo claustro. — Os pedreiros deslocaram uma laje antiga no porão. Três deles juram ter visto um “corredor que não estava lá” e ouviram vozes… depois disso, dois sumiram. O terceiro não fala desde então.

O corredor que levava ao porão tinha degraus em espiral, estreitos e úmidos. A cada volta, o ar ficava mais denso — o cheiro de pedra fria foi dando lugar a um odor metálico e doce, como ferro velho e flores apodrecidas. Nathan ligou o gravador de fita; Leonor tirou da bolsa uma lanterna pequena, um crucifixo, o caderno e a caixa de prata.

A porta do porão era de carvalho, reforçada com barras de ferro. No alto, um símbolo que Nathan reconheceu de pesquisas anteriores: uma roda com sete marcas — eco distante dos casos que os perseguiam desde Londres.

— Quem colocou isso aqui? — perguntou ele.

— Monges do século XV, ao que tudo indica — respondeu o padre Adrian, baixando a voz. — Chamavam de “selo de silêncio”.

Lá dentro, a temperatura despencou. O facho de luz cortou poeira antiga e revelou paredes riscadas com inscrições quase apagadas; algumas linhas, porém, pareciam recentes — arranhões fundos, paralelos, impossíveis de serem feitos por ferramenta comum. No centro do piso, uma laje deslocada deixava entrever um vão negro, estreito, que sugava a luz.

Leonor ajoelhou-se ao lado do buraco. No contorno da pedra, marcas de cera derretida e algo que fora sal, muito sal, agora pisoteado.

— Era um círculo de contenção — sussurrou. — E foi quebrado.

Nathan armou uma câmera de visão noturna num tripé improvisado. O visor mostrou a imagem granulada do porão — sombras alongadas, umidade nas juntas do piso, a boca do vão como um olho morto.

— Gravando — disse, em tom neutro que disfarçava a tensão.

O padre mantinha-se um passo atrás, dedos trêmulos no crucifixo.

— Há cânticos registrados nos arquivos, mas em fragmentos… — comentou. — Dizem que algo foi “conduzido para baixo e alimentado com silêncio”.

Um som irrompeu, tão leve que podia ser imaginação: raspas — como unha contra pedra, vindo das profundezas. Leonor ergueu a lanterna; o feixe mal entrava no vão, engolido por uma escuridão espessa.

— Ouviu? — perguntou Nathan.

— Ouvi. E não está longe.

Ela retirou do bolso um termômetro digital: a leitura caiu de 11°C para 3°C em segundos. Ao mesmo tempo, o gravador chiou — um estalo de fita, depois silêncio, e então uma camada fina de vozes, superpostas, quase indecifráveis.

> “…nolite…”

“…aperire…”

“…permane…”

— Latim truncado, — disse Leonor, franzindo o cenho. — Nolite aperire. “Não abram.” Permane. “Permaneça.”

— Aviso ou armadilha? — devolveu Nathan.

A luz de emergência no fundo do porão piscou duas vezes e morreu. No breu, o gravador captou algo novo: uma respiração, pesada, irregular, que não era de nenhum dos três. O som cresceu, aproximando-se do vão, como se algo cheirasse o ar acima.

Leonor tirou um punhado de sal consagrado da caixa de prata e começou a traçar um semi-círculo de proteção em torno da laje. As mãos, firmes; a voz, baixa:

— “Ad custodiam lucis, circinum facio.”

Nathan ajustou o foco da câmera. Por um instante, a tela mostrou dois pontos refletindo no escuro, na altura do vão — altos demais para um animal comum, baixos demais para um homem de pé. Um brilho úmido, fixo, inteligente.

— Tem olhos — soprou ele.

A respiração cessou. E, como resposta, um baque abaixo, algo roçando a pedra, arrastando-se. A laje vibrava levemente, uma tensão contida sob o piso. O padre Adrian deu dois passos para trás.

— Fechem. Pelo amor de Deus, fechem esse buraco.

— Se fecharmos sem restaurar o selo… — Leonor não terminou. O gravador explodiu em ruído e, entre os estalos, uma frase clara, como se alguém tivesse encostado a boca na cápsula do microfone:

> — “Libera me.”

A palavra ficou presa no porão, pendurada no ar, como gelo. A lanterna de Nathan falhou, voltou, falhou outra vez. Quando o feixe se estabilizou, a laje estava alguns centímetros mais fora do lugar — ninguém a havia tocado.

Nathan engoliu em seco.

— Isso não é só pressão do terreno.

As portas às suas costas bateram de uma vez, um som seco que percorreu os corredores de pedra como um trovão abafado. O padre correu até elas e tentou abrir — travadas. A respiração voltou, desta vez ao nível do chão, próxima demais.

Leonor terminou o semi-círculo e ergueu o crucifixo. O ar ficou pesado, um silêncio líquido enchendo os ouvidos, como quando se mergulha debaixo d’água. Então, garras — nítidas — arranharam a borda do vão, deixando quatro sulcos compridos na pedra.

— Nathan. — a voz de Leonor era só um fio. — Não estamos olhando para o vazio. O vazio está olhando de volta.

A fita rodou mais três segundos. No último, uma voz infantil, dissilábica, impossível de ser de uma criança ali, sussurrou tão perto que parecia colar-se à nuca deles:

> — “Cheguei.”

A vela que o padre segurava apagou. A escuridão fechou como uma boca. E o porão, finalmente, respirou.

Fim da Parte 1.

Parte 2

Ano: 2009

Local: Mosteiro de St. Alban, Northumberland, Inglaterra

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O breu era absoluto. Só o chiado do gravador preenchia o espaço, misturado ao som da respiração acelerada dos três. Nathan tateou até encontrar o tripé da câmera, tentando mantê-la firme. A luz infravermelha voltou a piscar no visor, e o que a lente mostrou fez o estômago dele gelar:

Um braço — um braço esquelético, cinzento, subindo devagar pela beira do vão. Os dedos, longos demais, terminavam em garras finas que deixavam riscos no piso de pedra. Não parecia carne viva. Era algo que não deveria se mover, mas se movia.

Leonor ergueu o crucifixo.

— “Exi in nomine Patris, et Filii, et Spiritus Sancti…”

A criatura recuou alguns centímetros, mas não desapareceu. Ficou ali, os dedos se contraindo, como se testasse os limites do círculo de sal. A cada tentativa, o ar ao redor esquentava e cheirava a enxofre, como se algo queimasse por dentro da própria pedra.

O padre Adrian tremia.

— Vocês não entendem. Isso nunca foi um porão. É um cárcere.

Nathan não desviava o foco da câmera. A lente registrava uma distorção — como se a sombra do braço fosse maior do que o corpo visível. Uma sombra enorme, que se projetava pelas paredes, alcançando o teto, até se espalhar em formas que lembravam asas quebradas.

— Um cárcere para quê? — Nathan exigiu.

Adrian apertou os olhos, quase chorando:

— Para o que os monges chamavam de “O Habitante”. Algo que se alimentava das vozes.

De repente, a fita do gravador estourou em risadas — muitas, simultâneas, masculinas, femininas, infantis. Vozes de idades diferentes, atropelando-se como uma multidão em um túnel. Leonor apertou mais o crucifixo contra o peito.

— Está nos testando. Quer quebrar o círculo.

A mão esquelética deslizou para trás, sumindo no vão. O silêncio retornou — mas não trouxe alívio. Porque, então, veio o som de passos. Lentos, arrastados, subindo os degraus que nenhum deles via, mas todos sentiam. O vazio tinha começado a subir.

O padre bateu na porta, em pânico:

— Abram! Abram!

Nada cedeu. As fechaduras estavam como soldadas.

De repente, um estrondo ecoou pelo claustro — como se um bloco de pedra enorme tivesse se partido. O chão tremeu. O círculo de sal vibrou, parte dele sendo arrastada para fora da posição. Leonor ajoelhou-se de imediato, repondo o traçado com as mãos rápidas.

Mas era tarde demais.

No visor da câmera, surgiu o contorno de uma figura inteira. Alta, magra, contorcida. O rosto era apenas uma fenda vertical, como se alguém tivesse costurado a pele em vez de deixá-la aberta para a boca. O corpo, coberto por algo que parecia tecido úmido e vivo, respirava em estalos.

E, sem mover os lábios que não tinha, a voz ecoou de dentro do gravador:

> — “Deixaram-me sozinho. Eu quero vozes.”

As lâmpadas presas às paredes estouraram uma a uma, até só restar o brilho vermelho do infravermelho da câmera. Nathan engoliu seco, mas manteve-a firme — cada detalhe precisava ser registrado.

Leonor começou a rezar em voz alta, firme, latim correndo rápido pelos lábios. O ar ficou cortante, e a criatura deu um passo para trás, como se fosse contida pelo semi-círculo de sal. Mas o olhar — se aquilo podia ser chamado de olhar — fixava-se direto no padre Adrian.

Ele caiu de joelhos.

— Foi culpa nossa… — soluçou. — Nós quebramos o selo para reformar o mosteiro…

As garras da criatura bateram contra a barreira invisível do círculo, faiscando como ferro contra pedra. Cada batida fazia o coração deles acelerar, como se o peito estivesse prestes a rachar.

Leonor se voltou para Nathan, sem parar a oração:

— Se o círculo romper, não haverá contenção. Precisamos reforçar. Agora!

Nathan largou a câmera por um segundo e abriu a caixa de prata. Tirou mais punhados de sal, jogando em volta da fissura. A criatura ergueu a cabeça, inclinando-a para o lado como um corvo. Então falou outra vez, agora direto no ar, sem depender do gravador:

> — “Posso trocar. Ele por vocês.”

O padre chorava, repetindo “perdão, perdão”. A figura esticou os braços longos até onde o círculo a detinha, as garras a milímetros do corpo dele.

Leonor, com a voz firme, gritou:

— Não vai nos comprar. Volte para o silêncio que te aprisiona!

Um grito ensurdecedor irrompeu. Não vinha de garganta alguma, mas da própria pedra ao redor. As paredes tremeram, pedaços de cal despencaram. O círculo brilhou por um instante como ferro em brasa, e a criatura recuou, como sugada para trás.

O vão voltou a ficar vazio. Mas não totalmente. No chão, dentro do círculo, ficou uma marca nova: três símbolos em forma de garras, queimados na pedra, fumegando.

Nathan desligou o gravador, mãos trêmulas. Leonor fechou a caixa de prata. O padre não se moveu, apenas chorava em silêncio.

E então, lá de dentro do vão, um último sussurro escapou, baixo o suficiente para que apenas a fita captasse:

> — “Não terminou.”

O eco permaneceu, como se o mosteiro tivesse engolido as palavras.

Fim da Parte 2.

Parte 3 (Final)

Ano: 2009

Local: Mosteiro de St. Alban, Northumberland, Inglaterra

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O silêncio após o sussurro era tão denso que parecia ter peso. O padre Adrian permanecia ajoelhado, as mãos cobrindo o rosto, murmurando preces desconexas. Nathan mantinha a câmera ligada, mas a cada segundo a sensação de que não deveriam registrar aquilo crescia em sua mente.

Leonor quebrou o silêncio, a voz firme apesar do cansaço:

— O selo não resistirá. Temos de refazê-lo por completo, agora.

Ela abriu o grimório antigo, retirado dos arquivos do mosteiro. As páginas estavam cheias de símbolos riscados à mão, instruções de rituais que misturavam latim e trechos em um dialeto monástico esquecido. Nathan iluminou o papel com a lanterna enquanto ela lia em voz alta.

O padre ergueu a cabeça, lágrimas escorrendo.

— Não façam isso! Se reacenderem o selo, o mosteiro nunca mais poderá ser usado. Será condenado para sempre.

Leonor o encarou com severidade.

— É isso ou o mundo lá fora conhecerá o Habitante.

Um estrondo interrompeu a discussão. As paredes estremeceram, e do vão do porão surgiu um vento gélido, que não deveria existir. O círculo de sal brilhou em chamas azuis, e uma mão esquelética emergiu novamente, desta vez segurando algo: um crucifixo quebrado, negro como carvão, que não pertencia a nenhum deles.

O gravador ligou-se sozinho, cuspindo frases em vozes múltiplas:

> — “Não quero o silêncio. Quero vocês.”

Nathan apertou os dentes.

— Comece o ritual, Leo. Eu seguro o círculo.

Ele espalhou o sal em traços firmes, formando as runas como o grimório mostrava. A cada símbolo completado, o ar vibrava, e a criatura se contorcia, tentando resistir à força que a empurrava de volta. Seu corpo parecia feito de sombra líquida, expandindo-se pelo teto e pelas paredes, cobrindo quase todo o claustro.

Leonor, firme, entoava:

— “In nomine Domini, claudo te. In vinculis aeternis, redigo te. Per Crucem et Sanguinem, redeas ad abyssum.”

O padre gritou:

— Isso vai destruí-lo! Não sabem o que libertaram!

E então aconteceu. A criatura avançou de súbito, atravessando a barreira do sal como se fosse névoa. Estava diante de Adrian em segundos, garras eretas. O homem tentou correr, mas foi erguido no ar, como uma marionete invisível. Seu corpo tremeu, e da sua boca saiu um coro de vozes — dezenas, talvez centenas, ecoando ao mesmo tempo.

> — “Ele me pertence. Foi ele quem me abriu.”

Leonor, sem hesitar, intensificou a oração.

Nathan segurou o crucifixo de prata e correu até a criatura, pressionando o objeto contra a sombra. Um grito ensurdecedor preencheu o ambiente; o crucifixo queimava como ferro em brasa contra o corpo etéreo do ser. Adrian caiu no chão, inerte.

O mosteiro inteiro vibrou como se fosse desmoronar. Estalactites caíam, pedras se partiam. Leonor traçou o último símbolo com o sal, fechando o círculo. O chão iluminou-se em azul intenso, formando uma prisão luminosa.

A criatura se debateu, mas a cada instante era sugada de volta para dentro do vão. Seus braços se esticaram, tentando agarrar qualquer coisa — mas só tocaram o vazio. E, antes de desaparecer por completo, deixou escapar um último rugido, carregado de ódio:

> — “Eu voltarei quando a pedra rachar.”

Com um estrondo final, o vão se fechou. O piso do claustro rachou e selou-se como se nunca tivesse existido abertura. O silêncio retornou, absoluto.

Nathan caiu sentado, exausto, ainda segurando a câmera que havia gravado tudo. Leonor respirava ofegante, mãos trêmulas ainda fechando o grimório.

Adrian, pálido, encarava o chão.

— Vocês não entenderam… Ele não é o único.

Leonor o fitou em silêncio, mas não respondeu. Sabia que havia verdades que não poderiam ser ditas ali, não naquela noite.

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📌 Relatório Final (Nathan Moore)

> “A entidade foi temporariamente selada. O mosteiro deverá permanecer fechado e consagrado, sem possibilidade de reutilização. O padre Adrian não resistiu ao choque mental após o contato direto com a entidade — embora vivo, sua sanidade foi comprometida. Gravamos todo o evento, mas não divulgaremos os registros. A criatura conhecida como O Habitante segue aprisionada… até que a pedra volte a rachar.”

Fim do Caso 5.

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