Suigeneris
...Luna Serrat...
Sempre diziam que eu tinha nascido correndo.
Minha mãe jurava que, com dois anos, eu já driblava a mobília da sala como se fosse final de campeonato. Meu pai dizia que era exagero, mas tinha aquele sorriso orgulhoso que não conseguia esconder.
Eu cresci no subúrbio de Florianópolis, onde os dias começavam com o cheiro de mar misturado ao barulho das bolas batendo contra o muro da escolinha do bairro. Era lá que eu passava as tardes, jogando com os meninos mais velhos, levando pancada, caindo na terra e levantando sem reclamar.
Meu apelido nasceu cedo: “Raposa” — por causa dos cabelos cinza que apareceram ainda na adolescência. No começo, sofri. Criança é cruel, e ouvir piadas todos os dias era normal. Mas, no campo, a cor do meu cabelo pouco importava. A bola sempre me obedecia, e quando eu corria, ninguém me alcançava.
Meu pai trabalhava como motorista de caminhão, viajando semanas inteiras. Minha mãe era costureira, e foi ela quem, com as próprias mãos, fez meu primeiro uniforme para jogar o campeonato municipal. Branco, com um número 28 costurado às pressas. Ainda lembro o cheiro do tecido novo e a ansiedade de estrear.
Aos 15 anos, eu já estava jogando no time feminino adulto da cidade. Não porque eu queria pular etapas, mas porque não havia mais desafios na minha categoria. Eu era rápida, ousada, e driblava como se estivesse dançando — algo que aprendi sozinha, vendo vídeos na internet e imitando.
Foi num desses campeonatos, jogando contra um time de Curitiba, que tudo mudou. Uma olheira alta, com sotaque espanhol carregado, me observou durante todo o jogo. Depois da partida, ela se apresentou como Helena Martín, olheira do Barcelona.
— Menina, você nasceu pra jogar aqui… mas não aqui no Brasil. Você nasceu pra jogar na Europa.
A frase ficou ecoando na minha cabeça.
Barcelona? Espanha? Era surreal demais para acreditar.
No entanto, três meses depois, lá estava eu, no aeroporto, com uma mala surrada, meu uniforme preferido e um contrato de base assinado. Deixar minha família foi como arrancar um pedaço de mim. Minha mãe chorava tentando esconder, meu pai fingia estar orgulhoso, mas eu via nos olhos dele o medo de me perder para um mundo que não conhecíamos.
A adaptação foi cruel. O idioma, a comida, o frio, a distância. E, acima de tudo, a sensação de que eu precisava provar meu valor todos os dias. No Barça B, enfrentei o preconceito por ser brasileira, por ser “moleque de rua” e por jogar com ousadia demais para o gosto de algumas treinadoras.
Mas eu não estava lá para agradar.
Eu estava lá para vencer.
Treinei, lutei, aprendi a calar críticas com gols. E um dia, depois de um treino que parecia só mais um, o técnico me chamou no canto.
— Serrat… arrume suas coisas. Você sobe amanhã para o time principal.
Meu coração disparou. Eu queria sorrir, pular, gritar. Mas só consegui dar um aceno contido, como se já soubesse que esse momento viria.
Eu não sabia, mas aquele era o primeiro passo para tudo que estava por vir.
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Acordei mais cedo que o normal.
Não porque estava ansiosa — pelo menos era o que eu dizia a mim mesma — mas porque sabia que aquele dia não era como os outros. O cheiro de café na cozinha parecia mais forte, o ar frio de Barcelona grudava na pele, e a camisa nova, com meu nome bordado nas costas, estava dobrada na cadeira como se esperasse por mim.
O vestiário do time principal era outro mundo. O piso brilhava, os armários tinham meu nome gravado, e a energia ali… era diferente. Cada jogadora carregava no olhar o peso de vestir aquela camisa. Eu também queria carregar.
O treino foi duro, e o técnico não aliviou nem por ser meu primeiro dia. Recebi divididas fortes, passes apressados e olhares que testavam minha resistência. No futebol profissional, você não é bem-vinda — você conquista esse lugar.
Naquela semana, além dos treinos, um assunto dominava o vestiário: o Clásico que se aproximava. Barcelona contra Real Madrid. Eu, brasileira recém-promovida, nunca tinha jogado um jogo desse tamanho, mas sabia o que representava.
Foi numa noite de sábado que eu vi, pela primeira vez, Clara Moretti. Eu estava no meu apartamento, assistindo a um jogo do Real para estudar o time. E lá estava ela: camisa 10, postura impecável, cabelos pretos longos que balançavam com cada movimento, e uma frieza que parecia controlar o ritmo do campo inteiro.
Não sorria. Não se exaltava. Só jogava — com uma precisão quase irritante.
Era diferente de tudo que eu tinha visto.
— Essa aí… é perigosa, murmurou minha colega de quarto, que já a conhecia de outros duelos.
Eu não respondi. Mas no fundo, uma chama acendeu. Não era medo. Era… desafio.
Quando o apito final soou, eu já sabia: no próximo jogo, não seria só Barcelona contra Real Madrid. Seria Luna Serrat contra Clara Moretti.
E eu estava pronta para provocar o primeiro incêndio.
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Atualizado até capítulo 47
Comments
Ana Faneco
já amando
2025-08-19
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