... Luna...
O dia parecia estar carregado, pesado de um jeito que você sente até no ar que respira.
Quando acordei naquela manhã, o sol ainda estava tímido no horizonte, mas a minha cabeça já girava a mil. O Clásico. O jogo que todos falam, que todo mundo quer jogar e, ao mesmo tempo, que pesa como uma montanha nas costas de quem está do outro lado do campo.
Eu tinha certeza que aquela semana inteira ia ser a mais intensa da minha vida até então — talvez até mais que o dia em que cheguei na Europa, deixando tudo e todos pra trás.
No caminho até o campo de treino, o frio da manhã espanhola bateu forte no meu rosto, mas eu nem percebi direito. Meu foco estava na cabeça: hoje, eu precisava mostrar mais do que só vontade. Precisava ser parte daquele time. Real. Não a novata que só treina e espera a chance.
Chegando no centro de treinamento, o vestiário já estava cheio, os rostos conhecidos e desconhecidos misturados, e uma energia elétrica no ar. O burburinho de conversas, risadas, mas também um silêncio tenso, porque o Clásico estava chegando — e isso mudava tudo.
Eu sempre fui meio na minha, meio observadora. Aprendi que, pra ganhar o respeito, você precisa entender o jogo dentro e fora do campo. Sentir o clima, saber quando falar, quando calar. Hoje, porém, eu queria mais do que nunca estar no meio daquele grupo, ser vista como parte da equipe.
Comecei o aquecimento trocando palavras com a Carla Jiménez — meia experiente, meio que líder informal do time — que me puxou pelo braço num tom meio brincalhão, meio sério:
— “Então, Raposa, hoje é o dia, hein? Clássico chegando. Tá pronta pra virar lenda ou vai só ficar no banco igual ano passado?”
Ri com vontade e respondi:
— “Você sabe que eu não fico parada, Carla. Só esperando a hora certa pra fazer meu gol.”
Ela balançou a cabeça, com aquele sorriso de quem sabe das coisas:
— “Isso eu gosto de ouvir. Mas não esquece, aqui é diferente. Aqui tem que pensar rápido, agir mais rápido ainda.”
Enquanto nos preparávamos, o técnico Don Miguel entrou no vestiário, aquela presença grande e imponente que faz todo mundo parar o que estiver fazendo só pra ouvir. Ele olhou pra mim com um olhar curioso e perguntou, sem rodeios:
— “Luna, me diz aí… em que posição você joga?”
Quase soltei uma risada. Se tivesse que escolher uma só posição, ia ser complicado. Eu sempre fui daquelas que mudam de lugar no campo, se adaptam ao que o time precisa. Na verdade, é isso que me valeu o apelido “Raposa” — pela astúcia, pela habilidade de aparecer onde ninguém espera, por ser sorrateira nas posições.
Com um sorriso meio tímido, meio confiante, respondi:
— “Eu jogo de ponta esquerda, ponta direita, meio-amadora, volante, meio-campo e até atacante. Depende do que o time precisa naquele momento. Por isso me chamam de Raposa. Porque eu me escondo, apareço, e faço o que for preciso pra abrir o jogo.”
Ele me olhou surpreso, como se não esperasse essa resposta. Depois, soltou um sorriso meio cansado, meio satisfeito:
— “Então você é uma camaleoa do futebol, hein? Isso pode ser uma vantagem — se você souber usar direito.”
O treino começou e o time entrou no campo, a grama parecendo mais verde do que nunca sob a luz do entardecer. O barulho das chuteiras, o toque da bola e os comandos do treinador criavam uma sinfonia que eu conhecia bem, mas que naquela noite parecia ressoar mais alto dentro de mim.
No aquecimento, consegui trocar mais algumas palavras com as outras jogadoras. Aos poucos, o gelo entre a novata e o time estava derretendo. A Carla me contou histórias engraçadas de clássicos anteriores, a Sara, atacante veloz, puxava papo sobre comida brasileira, e até a Luísa, a zagueira durona, lançou um sorriso encorajador quando me viu executar um drible rápido.
Durante o treino tático, fomos focadas em posicionamento e marcação. Eu me sentia à vontade em várias funções, e tentava usar minha versatilidade para surpreender as colegas e o treinador. A cada passe, a cada troca de posição, tentava mostrar que não era só velocidade e ousadia — eu queria inteligência, jogo de cabeça.
Mas o técnico Don Miguel não aliviava. Ele parava o treino a todo momento para corrigir detalhes, apontar falhas e, às vezes, me puxar de lado para dar instruções especiais. Eu sentia que ele queria tirar o melhor de mim, mas que também não me poupava.
A tensão crescia a cada minuto que passava. Não era só um treino — era o teste final antes da tempestade.
Quando o treino terminou, nos reunimos no centro do campo. Don Miguel ficou em silêncio por um momento, encarando todas nós. Depois, começou:
— “Está chegando a hora do jogo mais importante da temporada. O Clásico. Barcelona contra Real Madrid. Vocês sabem o que isso significa.”
Olhei para minhas colegas, todas com olhos focados, respirações pesadas, coração acelerado. Aquele jogo não era só um clássico. Era um ritual, uma guerra.
Então, ele virou para mim:
— “Luna, seu talento é claro. Sua vontade é maior ainda. Mas seu primeiro ano aqui é para aprender. Para crescer. Você não será titular amanhã. Vai pro banco.”
Meu peito apertou, e uma mistura de sentimentos explodiu dentro de mim. Orgulho por estar ali, entre as melhores, mas também uma frustração imensa por não poder ajudar mais.
Ele continuou:
— “Observe, aprenda, sinta o clima, entenda a pressão. Quando for a sua vez, você estará pronta.”
Saí do campo com um nó na garganta, mas uma certeza no coração: eu não ia me acomodar. Meu momento ia chegar — e quando chegasse, eu ia estar pronta para incendiar o campo.
O Clásico estava chegando.
E eu, Luna Serrat, já podia sentir o sabor da batalha que estava por vir.
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A noite chegou como um manto pesado que cobre tudo, mas dentro de mim, o que eu sentia era uma tempestade.
Estava no meu quarto pequeno no alojamento do clube, as luzes baixas e a cidade de Barcelona pulsando lá fora, distante, quase como um sonho.
Mas eu não estava sonhando. Estava prestes a entrar no campo do Santiago Bernabéu, o palco onde lendas são feitas e rivalidades viram história.
Deitei na cama, sem conseguir relaxar. As paredes pareciam apertar, os sons da rua invadiam meus pensamentos e o coração batia numa batida que eu jamais tinha sentido antes.
Pensei no meu pai, no meu sorriso tímido da infância, nas tardes jogando no quintal de terra em Florianópolis, nos olhos da minha mãe brilhando quando costurou meu primeiro uniforme. Tudo parecia tão longe, e ao mesmo tempo tão perto, como se aquela partida fosse o elo entre a menina que eu fui e a mulher que eu estava tentando ser.
Fiz um balanço mental de tudo que me trouxe até ali: a distância, as quedas, os dribles que aprendi sozinha, as dores do idioma, a solidão, as derrotas e as vitórias pequenas que me deram força.
E, claro, pensei nela. Clara Moretti.
A camisa 10 do Real Madrid, o nome que todo mundo repetia quando falavam do jogo de amanhã. A rival que eu mal conhecia pessoalmente, mas que eu já sentia pulsar como um desafio vivo dentro do meu peito.
O medo?
Não era medo. Era aquele fogo que só quem ama o futebol sabe sentir — uma mistura de respeito, vontade, ansiedade e aquela fome de provar que eu mereço estar ali.
Levantei da cama e fui até a janela. Olhei para as estrelas que mal brilhavam no céu de Barcelona, e silenciosamente prometi:
— Eu vou mostrar quem é a Raposa.
Arrumei minha mochila pela última vez, conferindo a chuteira, a faixa de capitã que ainda não era minha, mas que eu queria conquistar, e o uniforme com o número 28 bordado nas costas.
O silêncio da noite me abraçava, mas eu já não estava sozinha. Eu carregava comigo todas as minhas histórias, minha família, meus sonhos e a força de quem nunca desistiu.
Quando o despertador tocou cedo demais, eu estaria pronta.
Pronta para entrar naquele ônibus, cruzar as ruas de Madri, pisar naquele gramado histórico, e sentir a pressão de milhares de olhos atentos.
Pronta para viver o meu Clásico.
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Atualizado até capítulo 47
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