A chuva daquela noite parecia cair com mais raiva do que o normal, batendo contra o asfalto rachado como se quisesse arrancar a sujeira impregnada na cidade — mas Varlon não se limpa tão fácil. As ruas refletiam a luz dos postes como um mar de mercúrio quebrado, e cada passo de Kael soava mais alto do que deveria, como se a própria cidade estivesse prestando atenção nele.
O caso do armazém queimado, oficialmente um acidente elétrico, já havia revelado algo mais sombrio: um corpo carbonizado encontrado no porão. Não constava no relatório da corporação de incêndio. Não havia sido citado pelo legista. Mas Kael viu. Ele mesmo fotografou antes que retirassem os restos.
Era um homem, ou o que restava dele. Ossos queimados até ficarem quebradiços, mas com um detalhe impossível de ignorar: um fino pedaço de metal cilíndrico incrustado na base do crânio. O material, mesmo coberto de fuligem, não havia derretido. Isso não era comum. Isso não era normal.
Na manhã seguinte, Kael voltou ao local antes que a demolição começasse. Usou uma credencial improvisada para passar pelos guardas. O cheiro de fumaça ainda impregnava o ar, e cada passo sobre o chão coberto de cinzas levantava pequenas nuvens cinzentas que grudavam na roupa.
— Você é da perícia? — perguntou um homem de capacete, erguendo a lanterna.
— Delegacia central. Setor de investigações especiais. — Kael respondeu sem hesitar.
O trabalhador não insistiu. Em Varlon, quem fala com firmeza geralmente não é contestado.
No porão, as marcas no chão contavam uma história que não aparecia nos relatórios: manchas escuras circulares, como queimaduras químicas, e uma parede com um desenho que parecia ter sido gravado a fogo. Era um símbolo — dois círculos entrelaçados com linhas cruzando o centro, formando algo parecido com um olho.
Kael tocou a superfície. Ainda estava levemente áspera. Fotografou e fez um rápido esboço no caderno.
Ao sair, sentiu aquele arrepio que conhecia bem. O instinto de detetive — ou de sobrevivente — que o alertava de que estava sendo observado. Virou-se rápido, mas só viu um vulto desaparecer atrás de uma pilha de tijolos.
Seguiu o vulto até a lateral do armazém, onde a rua mergulhava em sombras. A figura era magra, encapuzada, e quando percebeu que Kael a seguia, correu. O detetive perseguiu, pulando poças e desviando de destroços, mas o corredor terminou em um beco sem saída.
O encapuzado estava parado no fim, ofegante, mas estranhamente calmo.
— Você não devia estar mexendo nisso — disse, com uma voz baixa, quase rouca.
— Então você sabe o que aconteceu no armazém.
— Sei mais do que você consegue imaginar… mas cada passo que der vai custar caro.
Antes que Kael pudesse reagir, o sujeito jogou algo no chão — uma pequena esfera metálica que se partiu ao impacto, liberando uma fumaça densa. Em segundos, o beco ficou cego. Quando a fumaça dissipou, a figura já não estava lá.
Kael olhou para o chão e encontrou apenas um pedaço do metal, com o mesmo símbolo do porão gravado em miniatura.
Mais tarde, de volta ao apartamento, espalhou todas as fotos e anotações sobre a mesa. A cidade parecia cochichar pela janela, o som distante de sirenes misturado à chuva fina que persistia. Aquele símbolo não era apenas um detalhe estético — era uma marca. Um aviso. Talvez um pertencimento.
Pegou o telefone e ligou para seu mentor, o velho detetive Drexler.
— Conseguiu algo? — a voz rouca do outro lado respondeu.
— Um corpo que não deveria estar lá, e um símbolo que alguém não quer que eu veja.
Houve um breve silêncio.
— Então é pior do que eu pensei… — disse Drexler. — Isso é marca da Rede Terminal. E se você está esbarrando neles, garoto… já entrou em território sem volta.
Kael olhou pela janela. Lá fora, as luzes de Varlon pareciam mais distantes, mais frias.
Ele sabia, no fundo, que não conseguiria parar.
E também sabia que, a partir daquele momento, não estava apenas resolvendo um caso — estava entrando em guerra.
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Atualizado até capítulo 71
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