A sala de interrogatórios da delegacia tinha um silêncio que parecia engolir o ar. O teto baixo, a lâmpada pendurada tremendo levemente, e o vidro espelhado no canto davam a impressão de que alguém — ou algo — observava cada movimento. Kael se sentou, apoiando o caderno de anotações sobre a mesa de metal, e observou o homem diante dele: Ramires, dono do pequeno armazém perto do beco onde o corpo fora encontrado.
Ramires suava, embora o ventilador girasse devagar no canto.
— Já disse tudo o que sei, detetive… — disse, evitando contato visual.
Kael inclinou-se para frente, o olhar fixo.
— O senhor disse que fechou o armazém às dez da noite, mas seu registro de caixa mostra uma venda às onze e quarenta e dois. Como explica?
Ramires engoliu seco.
— Ah… devia ser meu filho, ele…
— Seu filho está viajando há duas semanas — cortou Kael, abrindo uma pasta com fotos impressas. Entre elas, uma captura de câmera de segurança mostrava Ramires falando com um homem alto, de sobretudo escuro. O rosto estava parcialmente encoberto pela sombra da marquise.
Ramires tremia.
— Eu… não posso falar. Eles… eles me matam.
Kael respirou fundo. Sabia que forçar demais poderia fechar a boca de Ramires para sempre. Então mudou a abordagem:
— Não vou mentir. O que quer que o senhor tenha se metido… já passou dos limites. Mas agora há um corpo. Se ficar calado, vai carregar isso sozinho.
O homem fechou os olhos e, pela primeira vez, pareceu hesitar.
— Eles… chamam de Rede da Cinza. Ninguém sabe quem manda. Só que eles aparecem quando precisam… e somem como fumaça.
— O que quer dizer com “precisam”? — Kael perguntou, anotando rápido.
— Compram… coisas. Às vezes não é droga, não é arma. É… estranho. Caixas pesadas, sem marca. Nunca abrem. Quem tenta, desaparece.
O ar na sala parecia mais pesado. Kael notou que Ramires olhava para o vidro espelhado como se esperasse que alguém, do outro lado, estivesse ouvindo e pronto para agir.
— Quem era o homem de sobretudo? — insistiu Kael.
— Só chamam ele de Corvo. Nunca vi o rosto. Mas… tem um som… um clique metálico… cada vez que ele respira. Como se tivesse algo no peito.
Kael fechou o caderno. Tinha mais perguntas, mas percebeu que Ramires já estava no limite do que ousaria falar.
De volta ao seu pequeno escritório improvisado — um cubículo nos fundos da delegacia, com pilhas de relatórios antigos e um telefone que raramente tocava — Kael espalhou as fotos e recortes sobre a mesa. A palavra Rede da Cinza parecia queimada na sua mente.
Ele se lembrava de histórias parecidas nos becos de sua cidade natal: desaparecimentos súbitos, pessoas que pareciam viver em duas realidades ao mesmo tempo, boatos de caixas lacradas que mudavam de mão na calada da noite. Mas naquela época, ele era apenas um garoto tentando sobreviver. Agora, tinha uma chance real de seguir o rastro.
Pegou o gravador e revisou a entrevista. O som do ventilador, a respiração nervosa de Ramires… e, em determinado momento, quase imperceptível, um ruído vindo de fora da sala.
Um clique metálico.
Kael congelou.
Não havia ninguém usando metal ou ferramentas naquela noite na delegacia.
À meia-noite, decidiu voltar ao beco da cena do crime. A neblina estava mais densa que na noite anterior, e a rua deserta parecia um corredor sem fim. Passos ecoavam à distância, mas cada vez que Kael virava, não havia ninguém.
Ao se aproximar do ponto onde o corpo havia sido encontrado, algo brilhou no chão. Uma pequena peça de metal, do tamanho de uma moeda, com um símbolo gravado: um círculo cortado por duas linhas diagonais, como uma marca de interdição.
Ele a guardou no bolso.
Mas antes que pudesse se afastar, sentiu aquela presença — o peso no ar, o silêncio anormal, como se até os insetos tivessem desaparecido.
Uma voz grave e abafada soou atrás dele:
— Não deveria estar aqui, detetive.
Kael se virou, mas viu apenas um vulto alto, envolto num sobretudo, que recuava lentamente para dentro da névoa.
E, no fundo do silêncio… o som inconfundível.
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Atualizado até capítulo 71
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