KAEL: ZONA TERMINAL
O vento daquela manhã carregava um gosto metálico, como se a cidade inteira estivesse enferrujando por dentro. Varlon era assim: um corpo gigantesco, cansado e coberto de cicatrizes. Entre prédios descascados, ruas cheias de buracos e anúncios piscando em tons doentios, Kael caminhava com as mãos nos bolsos do sobretudo surrado. A cada passo, sentia os olhos invisíveis de alguém — ou de algo — o seguindo.
Não era paranoia.
Em Varlon, ser visto demais significava estar vivo por menos tempo.
Kael tinha vinte e nove anos, mas as olheiras profundas e o olhar duro envelheciam seu rosto. O passado ainda o assombrava. Crescera no Setor Leste, uma região tomada pelo tráfico e pela corrupção policial. A primeira lembrança marcante da infância era o som de tiros ecoando na madrugada, seguido pelo silêncio pesado que sempre vinha quando alguém não voltava para casa. Foi nesse ambiente que decidiu: se não pudesse acabar com o que destruía sua cidade, pelo menos aprenderia a entender a podridão que a mantinha de pé.
Não foi fácil entrar para a Academia de Polícia. Faltava dinheiro, tempo e, na maior parte dos dias, esperança. Mas encontrou um mentor — o detetive aposentado Harland Drexler — que viu nele não apenas raiva, mas determinação. Drexler treinou Kael pessoalmente, moldando seu raciocínio, ensinando-o a ler expressões como quem decifra mapas, e a nunca confiar em uma pista óbvia.
Agora, três anos depois de conseguir seu distintivo, Kael estava prestes a encarar seu primeiro caso oficial como detetive.
E ele já tinha a sensação de que não era apenas mais um crime.
Naquela manhã, o chamado veio por rádio:
“Unidade de investigação, comparecer ao Armazém 47, distrito industrial. Possível homicídio.”
O distrito industrial ficava na beira do rio de águas oleosas, onde navios fantasmas — cargueiros abandonados — boiavam lentamente, servindo de abrigo para ladrões, contrabandistas e gente desesperada. O Armazém 47, segundo o relatório, estava fechado há anos. Nenhum motivo para alguém estar lá. Nenhum motivo — a não ser algo ruim.
Kael chegou de carro, o motor tossindo como um fumante terminal. Ao abrir a porta, foi recebido pelo cheiro de ferrugem misturado com algo mais doce… e enjoativo. Sangue.
Dois policiais já estavam na entrada.
— “Tá aí dentro. Cena feia.” — disse um deles, acendendo um cigarro com mãos trêmulas.
Kael entrou.
A luz fraca atravessava telhas quebradas, formando feixes dourados que cortavam a escuridão. No centro do armazém, um corpo. Masculino. Pálido demais. Os olhos arregalados, como se a última coisa que tivesse visto fosse impossível de acreditar.
Mas o que realmente chamou a atenção de Kael não foi o corpo. Foi o símbolo pintado no chão, ao lado dele. Um círculo imperfeito, com linhas quebradas, como um diagrama antigo ou um mapa sem sentido aparente. O vermelho da tinta se misturava ao vermelho do sangue.
Harland Drexler, que aparecera discretamente atrás dele, soltou um assobio baixo.
— “Isso… não é trabalho de gangue. É outra coisa.”
Kael se abaixou, analisando cada detalhe. O símbolo parecia… incompleto. Como se faltasse uma parte.
E havia mais: as pupilas da vítima estavam dilatadas demais, o que indicava drogas ou um estado extremo de pavor. Nenhum sinal de luta, como se o homem tivesse aceitado a morte — ou sido paralisado de alguma forma.
Enquanto anotava, Kael percebeu algo no canto do armazém: um gravador portátil, antigo, parcialmente quebrado. Recolheu-o com cuidado, imaginando que ali poderia estar a primeira peça real do quebra-cabeça.
Drexler olhou para ele com aquele meio sorriso cansado.
— “Parabéns, garoto. Bem-vindo ao seu primeiro caso. Espero que goste de pesadelos.”
Kael não respondeu. Só olhou de volta para o corpo, para o símbolo e para o gravador.
Algo dizia que este não seria apenas um crime para resolver.
Era um convite.
Um convite para entrar em algo muito maior. E, talvez, sem volta.
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Atualizado até capítulo 71
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