A chuva tinha cessado há poucas horas, mas o asfalto ainda refletia a luz trêmula dos postes como se fosse vidro rachado. A cidade parecia conter a respiração, esperando algo — ou alguém — romper aquele silêncio espesso. Kael, agora oficialmente portando o distintivo que tanto almejara, caminhava pelas ruas de Varlon com um peso diferente nos ombros. Não era apenas a responsabilidade de um detetive, mas a sensação de que o mundo, de algum jeito, havia mudado na noite anterior.
O chamado veio cedo, antes mesmo de Kael ter tempo para se acostumar com a nova rotina. Um corpo encontrado no Setor 9, perto dos antigos armazéns de carvão. O lugar, há muito abandonado, era território de sombras e rumores, onde até os ratos pareciam desconfiar de entrar. Ele e seu mentor, Drexler, foram designados para investigar.
— Primeira cena oficial, garoto — disse Drexler, ajustando o chapéu. — Preste atenção. A cidade não vai te dar segundas chances.
Ao chegarem, a névoa densa parecia deformar os contornos das construções, como se a própria realidade estivesse enferrujando. A fita amarela da perícia balançava com o vento, e dois guardas mantinham curiosos afastados. No chão, encostado contra a parede descascada de um armazém, estava o corpo de um homem. Mas o que chamava atenção não era a morte em si — era a forma.
Os olhos estavam completamente negros, sem íris ou pupila, como se tivessem sido queimados por dentro. As mãos, crispadas, seguravam algo invisível no ar. E havia marcas no pescoço, não como as deixadas por cordas ou mãos humanas, mas sim por algo irregular, quase orgânico, com padrões que lembravam nervuras de folhas.
— Não parece um assassinato comum — murmurou Kael, abaixando-se para observar.
— E não é — respondeu uma voz grave. Um perito da divisão científica, com um equipamento portátil, mostrou as leituras. — Não encontramos traços de veneno, radiação ou qualquer ferimento interno convencional. Mas… há algo. Partículas no ar próximas ao corpo, desconhecidas.
Kael tocou levemente no chão ao lado do cadáver e sentiu um arrepio subir pela espinha. O concreto estava frio, muito mais frio do que o resto do ambiente, como se aquele ponto específico tivesse sido drenado de calor e vida.
Enquanto examinava, um som baixo, quase um sussurro, pareceu ecoar no fundo de sua mente. Era impossível distinguir palavras, mas a cadência lembrava uma voz tentando atravessar a barreira de um sonho.
— Kael, está me ouvindo? — Drexler o chamou, quebrando o transe. — Concentre-se.
De volta à realidade, Kael percebeu algo ainda mais perturbador: o relógio no pulso da vítima marcava 03:17, e parara exatamente naquele minuto.
De repente, um grito interrompeu a inspeção. Um dos guardas, que patrulhava o perímetro, correra para avisar que alguém estava observando a cena de longe. Kael e Drexler seguiram imediatamente, mas ao chegarem, encontraram apenas pegadas parcialmente apagadas pela umidade. As marcas não eram exatamente humanas — o calcanhar parecia estreito demais, e os dedos… longos, quase afilados.
— Isso vai ficar na sua cabeça — disse Drexler, olhando para as pegadas. — E se não tomar cuidado, vai te seguir até os sonhos.
Kael não respondeu. Seu olhar se fixou no horizonte, onde as luzes da cidade tremulavam como se algo estivesse interferindo no ar. O caso mal começara, mas ele já sentia que estava diante de algo muito maior — e muito mais antigo — do que qualquer crime registrado nos arquivos de Varlon.
E, no fundo, aquela voz abafada ainda insistia em chamá-lo.
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Atualizado até capítulo 71
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