DÍVIDA DE PAIXÃO
A chuva caía como lâminas naquela noite.
A estrada, estreita e mal iluminada, parecia um corredor sem fim. No banco de trás, Isabela, com apenas doze anos, tentava acalmar Sofia, um bebê de meses que chorava sem parar. A mãe, no banco do passageiro, virava-se para trás de tempos em tempos, tentando sorrir para acalmar as filhas. O pai mantinha as mãos firmes no volante, lutando contra o vento.
Foi então que os faróis surgiram no retrovisor. Um carro preto, avançando rápido demais.
Dentro dele, Lorenzo Valenti, de dezessete anos, tentava alcançar o irmão mais velho, que havia fugido depois de uma briga familiar. Ele não percebeu que a curva se aproximava… nem que estava prestes a mudar a vida de estranhos para sempre.
O barulho veio primeiro: o ronco do motor, o som dos pneus rasgando a água no asfalto.
Depois, tudo aconteceu de uma vez. O carro de Lorenzo deslizou na curva, batendo de leve na traseira do veículo da família Nunes. Foi o suficiente para o pai de Isabela perder o controle. O carro rodou na pista, atravessou o guard-rail e despencou por uma ribanceira.
O mundo virou de cabeça para baixo. Vidro quebrando. O grito da mãe. O choro agudo de Sofia. O gosto metálico de sangue na boca.
Quando Isabela abriu os olhos, o cheiro de gasolina era sufocante. O pai estava imóvel. A mãe, tentando soltar o cinto de segurança, repetia o nome das filhas como um mantra.
Foi Lorenzo quem desceu correndo pela encosta, ignorando a dor no próprio corpo. Ele arrebentou a porta traseira com um chute, puxando Isabela e o bebê para fora, segundos antes de o carro começar a pegar fogo.
Mas o resgate não foi completo.
A mãe não resistiu aos ferimentos. O pai morreu antes mesmo de a ambulância chegar.
Naquele instante, Lorenzo jurou que cuidaria das meninas… mesmo que elas nunca soubessem seu nome.
E durante anos, ele manteve a promessa, observando de longe.
Com um detalhe que o assombrava todas as noites: a certeza de que, se não tivesse estado naquela estrada, a família Nunes ainda estaria viva.
...
Os dias seguintes ao acidente foram um borrão.
Isabela se lembrava de sirenes, de perguntas que não sabia responder, de um quarto de hospital frio demais para quem acabara de perder tudo.
Quando recebeu alta, disseram que “o Conselho Tutelar viria conversar”. Era a forma delicada de avisar que ela e Sofia provavelmente seriam separadas e levadas para abrigos diferentes.
O coração dela congelou.
Ela não ia deixar isso acontecer. Nunca.
Foi aí que Dona Teresa, a vizinha de porta, apareceu. Uma mulher robusta, de cabelos grisalhos e mãos calejadas, que carregava sempre o cheiro de pão fresco.
— Você vai ficar com sua irmã, menina. Eu prometo — disse, com a voz grave. — Mas precisa confiar em mim.
Isabela não sabia, mas aquela promessa só foi possível porque alguém, do lado de fora, já estava mexendo os fios.
Enquanto ela chorava no pequeno quarto, Lorenzo, ainda machucado do acidente, ligava para contatos do pai, subornando assistentes sociais, inventando histórias de parentes distantes. Tudo para que nos registros constasse que Sofia estava sob “tutela familiar”, evitando que fossem separadas.
Dona Teresa tornou-se a âncora das duas.
Ela cuidava de Sofia quando Isabela ia à escola, ensinava a menina a trocar fraldas, aquecia mamadeiras, levava sacolas de comida dizendo sempre a mesma mentira:
— Sobrou lá em casa, e comida não se desperdiça.
À noite, Isabela cochilava sentada no sofá, Sofia aninhada no colo, sonhando com o tempo em que ainda havia risadas na casa. Mas mesmo tão nova, ela aprendeu rápido a administrar dinheiro, a lidar com burocracia, a mentir para assistentes sociais com um sorriso treinado.
Tudo para manter as duas juntas.
E sempre, como se fosse coincidência, havia pequenas ajudas:
uma conta de luz misteriosamente paga, a escola permitindo que Isabela faltasse quando Sofia estava doente, um médico que atendia de graça.
Ela nunca soube que cada uma dessas coisas vinha das mãos de Lorenzo Valenti.
Ele observava de longe, mantendo-se nas sombras, alimentando a crença de que estava “protegendo” as meninas.
Mas no fundo, era um homem tentando compensar uma culpa que não passava.
E, sem perceber, transformava-se no fantasma constante na vida delas.
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Atualizado até capítulo 71
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Fatima Gonçalves
começando 13/08/25
2025-08-14
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