A segunda-feira amanheceu tempestuosa. Acordei com o som de trovões e gotas pesadas de chuva contra a janela.
Não que eu tivesse dormido muito bem aquela noite. Depois da notícia bombástica, Adam tinha deixado a sala sem nenhuma palavra, eu tinha dado um parabém meio mecânico e ainda incrédulo, minha avó tinha feito chá para todo mundo e escutei minha mãe falar sobre vestido, festa e outras coisas que não consegui nem assimilar, enquanto seu noivo sorria.
Minha vontade era de ligar para Taís para desabafar, mas não encontrei a energia necessária. Meu humor estava sombrio, confuso e perplexo.
Casamento. De uma relação casual, onde Luiz parecia que logo iria pular fora, para um compromisso oficial com direito a uma joia caríssima.
Luiz Antônio tinha ido trabalhar, como tinha avisado a todos na noite anterior. Como dono de vários hospitais, ele sempre tinha muita coisa para fazer e não podia tirar férias longas. Até mesmo isso parecia fazer os olhos da minha mãe brilharem.
Valentina, em um clima desses, devia estar aproveitando sua suíte com um belo café na cama. Ela sempre falava sobre o quanto gostava disso, dias de chuva na cama, com filmes e um cobertor quente.
Eu não conseguia imaginar como Noely estava aproveitando seu dia, tive a impressão de que ela também estava desconfortável com a novidade do casamento – mesmo que não tivesse dito nenhuma palavra.
Resolvi descer para pegar alguma coisa para comer. Sem surpresa, vi a mesa vazia, então me dirigi até a cozinha e topei com Adam mastigando uma torrada sem muita vontade. Ele usava uma blusa de frio de lã preta, com as mangas um pouco compridas demais.
- Oi. – falei\, sem graça\, como se tivesse interrompendo algo muito importante.
- Oi. – pela primeira vez ele não parecia arrogante ou irônico.
Meio sem saber o que fazer, me aproximei e peguei uma torrada de cima da bancada da pia, onde ele estava apoiado com as costas.
- Isso tudo parece uma loucura para você também? – ele puxou assunto.
- Você quer dizer...
- Esse casamento apressado. – completou – Há quanto tempo estão saindo juntos?
- Não sei. – respondi com sinceridade – Você parece realmente muito surpreso com isso. – comentei\, esperando que ele falasse algo a mais.
- Não me diga. – suspirou\, desencostando da pia e ficando de frente para mim – Meu pai só foi casado uma vez. Com a minha mãe.
Adam me parecia velho demais para sentir que alguém estava tentando tomar o lugar de sua mãe. Provavelmente ele nem morava com o pai, pelo menos na maior parte do tempo, então por que se irritar?
- Foi tão ruim assim?
- Ruim? – deu uma risada sem humor – Foi o melhor casamento do mundo. – acrescentou bruscamente.
- Então por que acabou? -indaguei\, confusa.
- Porque ela morreu. – ele virou de costas e deixou a cozinha\, sem esperar por uma resposta.
Me senti mal por ter perguntado. Não que eu me importasse tanto assim com os sentimentos de Adam sobre as coisas, mas a família era a família. Como eu tinha aprendido na prática, não faça perguntas pessoais sobre a família se não tiver intimidade. Eu falei vezes demais sobre a separação dos meus pais para pessoas que eu não queria.
Resolvi ir atrás dele. Deixei a cozinha e subi os degraus no exato instante em que minha avó descia.
- Não aguento mais o quarto. – comentou\, casualmente – Vou procurar o que fazer.
- Boa sorte. – desejei\, sem me interromper.
Parei na frente da porta fechada e respirei fundo antes de bater e abrir, sem esperar por uma resposta.
- Bom\, pelo menos dessa vez você bateu. – ele comentou\, sem virar o rosto.
Estava deitado na cama, já sem a blusa de frio. As mãos estavam atrás da cabeça e os olhos fitavam o teto, vi o peito nu subir e descer com a respiração.
- Olha\, fui insensível. – fechei a porta e andei até mais perto da cama – Não devia ter perguntado nada\, nós nem nos conhecemos.
- E logo seremos irmãos. – comentou\, sarcasticamente\, finalmente me olhando.
- Eca. – tremi e ele riu – Sério. Foi mal. Eu odiava quando perguntavam pelo meu pai.
- Pelo mesmo motivo que eu? – Adam se sentou\, interessado.
- Não exatamente. – sentei na pontinha da cama\, o mais longe possível dele – Meu pai nos deixou quando eu tinha quinze anos. Tem outra família agora.
Os pontos pareceram se ligar na cabeça dele.
- Por isso você ficou tão irritada outro dia\, não é? Achando que eu estava dizendo coisas sobre a sua mãe.
- Sim. – confessei\, soltando o ar – Foi um período muito difícil para ela. Seu pai é o primeiro namorado\, eu só estou... preocupada.
Adam pareceu de desarmar, o que fez com que eu abaixasse um pouco a guarda também.
- Desculpa por isso. – pediu\, gentilmente – Eu só estava mau humorado por ter gente diferente em casa. De novo. – suspirou – Não fazia ideia de que dessa vez seria diferente.
- Acha que é diferente? – perguntei\, não sei se com medo ou esperança. Só não queria que minha mãe se magoasse.
- Bom\, ele nunca pediu ninguém em casamento. – Adam deu de ombros – E minha mãe morreu há dez anos.
É, aquilo poderia significar alguma coisa.
- Muitas namoradas?
- Muitas. – ele revirou os olhos – As primeiras foram as piores. Eu ainda era um garoto e elas achavam que precisavam me conquistar. Não gosto nem de lembrar.
- Certo. – encerrei o assunto – Bom\, vou cuidar da minha vida. – me levantei.
- Não quer fazer nada? – Adam se sentou na cama.
- Não precisa fazer isso. – respondi\, já indo para a porta.
- Fazer o quê?
- Ser gentil porque as coisas mudaram de rumo. – falei por cima do ombro antes de fechar a porta.
Não escutei sua resposta, mas não importava. Só de podermos ser educados um com o outro já era mais do que suficiente. Como adultos, nós não moraríamos na mesma casa, só nos encontraríamos em ocasiões especiais. Não precisávamos ser amigos, muito menos – eca – irmãos.
Fui até o quarto dos fundos, onde minha mãe estava de pijama vendo um filme. Ao seu lado, uma badeja de café da manhã com os restos do que tinha comido, mostrava que eu ainda a conhecia muito bem.
- Como está? – perguntei da porta.
- Muito bem. – ela sorriu e pausou o filme – Não quis te incomodar\, caso ainda esteja ocupada com a faculdade.
- Ah... – senti remorso pela mentira da noite anterior\, mas ainda gostava de ter uma desculpa para ficar sozinha – Logo estarei plenamente livre.
- Estarei aqui quando quiser. – ela piscou.
Voltei para o quarto, sem vontade de fazer nada, e me joguei na cama. Eu poderia ter usado aquele tempo para contar a novidade para Taís, mas ainda não tinha energia o suficiente.
Minha mãe ia se casar. Com um homem muito rico, que aparentemente até ontem tinha problemas de relacionamento, uns quinze anos mais velho e que eu não sabia nem se gostava ou não.
- Ei. – escutei uma batida na porta antes da cabeça de Adam surgir pela fresta – Vamos até a cidade?
- Nessa chuva? – apontei com o polegar para a janela.
- Vamos\, vai. Estou enlouquecendo aqui. – ele insistiu – Sou cuidadoso.
- Está bem. – concordei\, levantando – Vou trocar de roupa e te encontro lá em baixo em dois minutos.
- Beleza. – ele fechou a porta.
Trocar de roupa basicamente significava colocar jeans no lugar da calça de pijama e um moletom em cima da blusa de pijama. Eu que não ia ficar me arrumando.
Mesmo assim Adam estava impaciente, batendo o pé do lado da porta de saída. Assim que desci a escada, ele a abriu. O vento frio jogou meus cabelos para trás e o cheiro de terra molhada me atingiu, maravilhoso.
- Vai me fazer andar na chuva? – reclamei.
- Claro que não. Vou pegar o carro e você espera na cobertura aqui da frente. – ele se atirou na chuva\, sem esperar pela resposta\, sumindo em instantes.
Cruzei os braços no peito, esperando, enquanto tentava não congelar. Dois minutos depois um carro branco apareceu e estacionou bem na minha frente. Senti apenas algumas gotas geladas no rosto enquanto abria a porta, mas o ar quente do lado de dentro me fez não reclamar.
- Onde vamos? – perguntei enquanto ele manobrava e dirigia em direção ao portão.
- Comer bolo.
- Bolo? – eu devia ter escutado mal.
- Sim. – suas mãos seguravam o volante muito suavemente.
Olhando para ele, imaginei que ia comprar alguma bebida para mais tarde, mas, aparentemente, eu o estava julgando sempre da pior forma possível.
Sacolejamos pela estrada até a cidade, e só lá me senti um pouco mais segura. Olhei pela janela, para os locais que eu conhecia perfeitamente bem, e percebi que na casa de Luiz eu me sentia em outro lugar. Eu nada tinha visto dos locais que costumava ver quando vinha passar as férias em casa.
- Esse lugar é muito bom. – Adam quebrou o silêncio que tinha se instalado entre nós – Venho aqui desde... bom\, sempre.
Ele estacionou em um lugar que eu conhecia muito bem. Não comia lá com frequência porque era um pouco caro demais para minha mãe bancar sempre, mas já tinha provado e realmente eram os melhores bolos da cidade.
Corremos pela chuva e Adam abriu a porta de vidro para mim. A temperatura do lado de dentro estava agradável, e só havia uma mesa ocupada, com um homem e duas crianças que pareciam ser seus filhos.
Escolhemos uma mesa no fundo, bem ao lado da vidraça que dava para o lado de fora, e Adam pegou um dos cardápios para escolher.
- Já sei o que quero. – disse depois de alguns instantes – E você?
- Nada\, obrigada. – respondi\, sem nem mesmo ter me preocupado em olhar.
- Nada? – ele repetiu\, incrédulo\, enquanto chamava a garçonete com um gesto.
- Eu não trouxe a carteira. – encolhi os ombros – Nem pensei nisso. – e\, se tivesse pensado\, saberia que lá só teria o dinheiro da minha passagem de volta e alguns poucos trocados.
- Oi\, Adam. – a garçonete\, uma mulher que tinha idade para ser nossa avó\, sorriu – Faz tempo que não o vejo.
- Oi. – ele respondeu\, sorridente e educado de um modo muito pouco comum – Eu queria uma fatia de ninho com morango. E para Samantha... – ele me olhou\, sugestivamente – Pode pedir.
- Não\, eu não... – ergui as mãos\, negando.
- Quer saber? – ele olhou para a garçonete outra vez – Pode trazer um de brigadeiro com nozes. Se ela não comer\, eu como.
A mulher sorriu e se afastou.
- Não precisava disso. – comentei\, sem graça.
- Não seja boba. Eu convidei\, eu pago. – ele se acomodou na cadeira e olhou ao redor – Esse lugar nunca muda.
- É. – concordei.
- Já conhecia. – ele notou\, finalmente.
- Já. – confirmei – Não vim muitas vezes\, mas sei que é bom.
Adam tamborilou os dedos na mesa, pensativo.
- Minha mãe me trazia aqui. – disse\, por fim\, sem me olhar – Acho que\, com a notícia da noite passada\, acabei... sabe? – ele gesticulou ao redor.
- Acho que sim. – confirmei com um sorriso.
Adam devia estar pensando milhares de coisas sobre o passado e a mãe. Posso apostar que quis ir até ali só para se sentir um pouco mais próximo dela.
- Aqui está. – a garçonete colocou os bolos na nossa frente.
Minha boca salivou de olhar para a fatia do bolo de brigadeiro. Eu não diria nada, mas era um dos meus preferidos. Não faço ideia de como Adam poderia saber...
- Vai. – ele me estimulou\, já com um pedaço generoso de bolo na boca.
Coloquei uma garfada e suspirei, satisfeita.
- Essa é uma das melhores coisas. – comentei.
Adam estava me observando com a cabeça inclinada, parecendo se divertir com a minha reação. Me recompus rapidamente e voltei a comer, encarando o prato.
- Você sempre morou aqui? – ele puxou assunto.
- Sim. Até a faculdade. – respondi\, grata pelo assunto suave – E você?
- Férias. – deu de ombros.
Balancei a cabeça, mastigando. Reparei que olhos verdes de Adam tinham alguns pontinhos castanhos no centro.
- Quer mais alguma coisa? – ele ofereceu\, raspando seu prato.
- Não\, obrigada. – eu ainda tinha uma boa parte do meu bolo.
- Pode terminar com calma. – ele se levantou e pegou a carteira – Vou pagar para adiantar.
Fiz um gesto com om polegar, já que a boca estava cheia.
O balcão ficava nas minhas costas, então Adam sumiu da minha visão. Continuei saboreando cada pedacinho do bolo, já que eu não comeria outro igual tão cedo, e olhando a chuva do lado de fora.
Escutei a porta da entrada abrir e fechar.
- Oi\, Adam. – uma voz suave e fina disse em bom tom.
Eu não queria ser intrometida, mas me virei com curiosidade. Quem, afinal, o conheceria na cidade se só vinha para passar as férias?
A garota, alta e loira, não me era familiar, mas eu não prestava muita atenção em todo mundo. Quando morava na cidade tinha meu grupinho de amigos e era o suficiente.
- Ei\, você não me ligou dessa vez. – ela apoiou a mão no braço dele.
- É\, pois é. – Adam guardou a carteira no bolso e deu um sorriso desconfortável – Coisas de família\, sabe como é...
Ele olhou na minha direção, provavelmente querendo saber se eu já tinha acabado. Indiquei o garfo com um pedaço de bolo a caminho da minha boca.
- Bom\, pode ligar ainda... – ela se inclinou na direção dele – Podemos fazer o de sempre.
- É\, sei. – ele começou a andar até onde eu estava.
Coloquei o último pedaço de bolo na boca e me levantei, pronta para ir.
- Vamos? – me perguntou.
- Claro. – concordei.
A garota olhou de mim para ele, e depois para mim de novo com um ar de desprezo.
- Vou esperar. – ela se inclinou e beijou a bochecha dele\, bem próximo da boca.
- Ok. – Adam disse\, indo para a porta.
O segui, reprimindo um sorriso. Até que era legal vê-lo sem graça.
Entramos no carro ao mesmo tempo.
- Obrigado pela ajuda. – comentou.
- Não sabia que precisava. – me acomodei\, bem mais relaxada que no começo – Ela me pareceu bem o seu tipo.
Adam revirou os olhos enquanto manobrava.
- Deixa eu adivinhar. – falei\, alegremente – Vocês têm um casinho em todas as férias.
- Não em todas. – me corrigiu – Já faz uns dois anos que não temos nada\, mas ela parece não entender.
- Imaginei que você gostasse das coisas o mais fáceis possível. – provoquei.
- Você não sabe nada sobre mim. – ele encostou o carro na frente do mercado.
- O que vamos fazer aqui? – observei enquanto ele abria a porta.
- Eu só vou pegar alguma coisa para beber a noite. – respondeu\, batendo a porta.
Encostei a cabeça no banco, sorrindo.
É, talvez eu soubesse apenas um pouquinho.
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Atualizado até capítulo 43
Comments
Solange Borkovski
Estão melhorando ...
2025-08-07
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