Capítulo Três

“Algumas conexões não pedem licença. Simplesmente existem.”

Ainda estou com as mãos marcadas de luvas e sangue. Troquei o avental. Lavei o rosto. Mas é como se… parte de mim ainda estivesse na sala cirúrgica. Ou pior: como se eu tivesse deixado algo lá dentro.

A cirurgia foi delicada. O baço dele estava estourado, havia sangue demais, tempo de menos. Mas isso… isso eu aguento. Já vi pior. Já perdi mais. O que não entendo é o que senti quando o vi na sala de trauma. Quando olhei para aquele corpo… ensanguentado, imóvel, à beira do fim.

Foi como se algo me rasgasse por dentro. Não era profissional. Não era técnico. Era visceral. E o pior é que… eu mal o conheço. Nos falamos por quanto? Quinze minutos? Talvez menos.

Mas tinha alguma coisa nele. No jeito como sorriu. No modo como me olhou. Como se me visse de verdade. E agora, essa ideia absurda de que eu não podia perdê-lo... Como se o mundo ficasse mais cinza se ele não estivesse aqui.

Balanço a cabeça.

“Você está cansado, Vian,” penso. “Falta de sono. Emoção do plantão. Você já perdeu pacientes antes, nunca lidou bem com isso. Só isso.”

Mas não. Não era isso. Não é. Me pego com o livro ainda no bolso. "Sob as Estrelas."

Folheio algumas páginas. Letras leves. Um poema que começa com “Se eu pudesse morar em um instante...”. Fecho o livro. Aperto a lombada com força.

Sem pensar, vou até o quarto onde ele está. Empurro a porta devagar. A luz é baixa, azulada. A máquina ao lado da cama apita devagar. Ritmado. Vivo. Ele está ali. Lucien. Respirando.

A primeira vez que o vi, achei que era só beleza. Mas não é isso. É… presença. Ele tem uma presença estranha, densa, como se o ar ao redor dele fosse diferente. Fico em pé por alguns segundos, só olhando. E então, sem saber por quê, me sento na poltrona ao lado da cama. Fecho os olhos por um instante. Escuto meu coração. Está acelerado. Abro os olhos. Olho para ele. E pela primeira vez em dias, eu respiro fundo. Ainda não sei o nome disso. Mas sei que quero descobrir.

O silêncio do quarto me embala por alguns minutos. Só o som das máquinas e da respiração dele me alcançam. E então, meu celular vibra no bolso. Olho o visor: Dr. Arthur Kensley. Me levanto devagar, saio do quarto e atendo a ligação no corredor, tentando deixar a voz firme.

Eu – Oi, professor.

Arthur – Vian... Ele responde com aquela calma que sempre me atravessa. – Como você está?

Eu – Estou bem. Digo rápido demais.

Há uma pequena pausa.

Arthur – Como você está, Vian? Ele repete, devagar, como quem sabe exatamente o que está perguntando.

Fecho os olhos por um segundo. Respiro fundo. – Eu não tenho certeza.

Arthur não diz nada por um momento, mas sinto a presença dele como se estivesse ao meu lado. E então, com a suavidade que só ele tem, diz:

Arthur – Seu plantão terminou. Quero que passe no meu escritório.

Eu – Eu ainda preciso cuidar do paciente. Respondo, quase por reflexo, olhando de relance para a porta do quarto.

Arthur – Vian. Ele diz meu nome como quem dá uma ordem, mas sem levantar a voz. Só... com peso.

Eu abaixo os ombros, vencido. – Tudo bem. Vou me trocar e passo aí.

 Arthur – Estarei esperando.

Desligo. Fico ali parado por alguns segundos, encarando a tela preta do celular. Então olho de novo para a porta do quarto. Para o homem que mal conheço e que, de algum modo estranho, me fez sentir como se já tivesse perdido algo antes mesmo de ter.

Respiro mais uma vez. Curvo os ombros. E sigo para o vestiário.

***

Já vestido com roupas limpas, volto ao quarto. Precisei respirar, lavar o rosto com calma. Mas parte de mim continuava aqui, ancorada naquele leito. A iluminação está baixa. O monitor exibe sinais estáveis. Respiração tranquila. Pulso ritmado. O corpo está em repouso. Vivo.

Me aproximo devagar. Observo o rosto dele, agora sem sangue, sem urgência. Pálido, mas… sereno. Como se estivesse sonhando com algo distante. A porta se abre suavemente atrás de mim.

Enfermeira – O doutor Kensley ligou perguntando por você. Diz a enfermeira-chefe, num tom gentil.

Me viro para ela. É uma mulher experiente, olhar firme, mas doce. Sempre soube ler silêncios. Ela sorri.

Enfermeira – Pode ir. Ele não vai acordar tão cedo.

Eu – Você vai ficar com ele?

Enfermeira – Vou. Pode deixar que cuidarei dele, como se fosse meu. Ela responde, e há algo maternal na maneira como ajeita a coberta sobre o peito dele. – Ele vai ficar bem até você voltar.

Assinto, tocado por uma gratidão que não sei expressar. E então… por impulso…

minha mão se ergue. Roça levemente o rosto dele. Só um gesto rápido. Quase nada. Mas sinto o calor da pele. E aquilo me atravessa como uma linha tênue entre o que conheço e o que ainda não entendi.

Eu – Obrigado. Digo à ela.

Ela apenas sorri, cúmplice. Saio do quarto, atravesso os corredores iluminados pelo fim da tarde. Os jardins do hospital estão quietos, o ar fresco. O céu começa a se tingir de dourado. Caminho em direção à reitoria, onde fica o escritório do professor Kensley. Mas deixo parte de mim ali.

Naquele quarto. Naquele rosto.

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