“A vida nem sempre é suficiente.”
Três cirurgias de emergência. Um plantão de vinte e oito horas. Um corpo que não respondeu. A ficha do paciente ainda estava na minha mão quando a luz parou de piscar no monitor. A gente sabe quando é tarde demais, mesmo antes do último som. E eu continuei ali por mais alguns segundos. Não por ele, por mim. Para aceitar. Para digerir. Para fingir que estou acostumado.
“Estou…?”
Respiro fundo e me encosto na parede fria do vestiário, tentando lembrar em que momento da madrugada meu corpo deixou de me obedecer. Meus ombros pesam, meu estômago está vazio, e minha cabeça... cheia. Cheia de vozes, alarmes, bisturis, da curva descendente da saturação, da frase “não conseguimos reverter”.
Às vezes, eu me pergunto se estou mesmo fazendo a diferença. Às vezes, eu me pego pensando se não sou só mais um remendo malfeito contra o inevitável.
Rio sozinho. Arthur me mataria se me ouvisse dizer isso. Com aquela sobrancelha arqueada e a voz grave, diria: "Você não está aqui para vencer a Morte, Vian. Está aqui para dar à vida mais tempo de beleza.” É o tipo de coisa que só ele consegue dizer sem parecer um lunático.
Alongo os braços por cima da cabeça. Cada músculo do meu corpo reclama. Meus olhos ardem. E ainda assim, preciso estudar. Tenho um artigo para terminar. É sobre condutas em politraumatizados, um tema que exige concentração, precisão… tudo o que eu não tenho agora.
Mesmo assim, não consigo ir direto para casa. O café da máquina do hospital perdeu qualquer dignidade. E eu preciso de ar. E de um lugar onde os alarmes não toquem a cada cinco minutos.
Pego meu casaco, penduro o estetoscópio no pescoço, como se ele fizesse parte de mim, e começo a andar. Os corredores ainda estão meio escuros. Silêncio rarefeito. A luz azulada da ala cirúrgica me acompanha até a porta de saída.
Lá fora, o dia ainda não decidiu se vai amanhecer ou chover. Perfeito. Eu também ainda não decidi se estou vivo ou só funcionando. Respiro fundo. Dobro a esquina. E vou em direção ao café.
Sem saber que algo me espera ali. Algo que vai me tirar da rotina, do eixo, e talvez, de mim mesmo.
***
O sino da porta toca quando entro. O cheiro de café fresco e pão assado me recebe com mais ternura do que qualquer abraço que recebi nos últimos meses.
Mabel – Bom dia, doutor Whitmore. Diz a senhora atrás do balcão, com um sorriso conhecido. É a Sra. Mabel, dona do lugar, mulher de meia idade, sempre com os cabelos presos num coque frouxo e um avental florido.
Eu – Bom dia, Mabel. Respondo, e meu sorriso sai antes mesmo de eu perceber. Ela já virou parte da rotina. Como o som do despertador, ou o bisturi na mão.
Mabel – Já levo seu café. E... Ela sorri como quem guarda um segredo. – Guardei uma fatia pra você.
Assinto, agradecido. Escolho a mesa de sempre, um canto discreto, ao lado da grande janela e de frente para a porta. Ali, o mundo passa devagar. E eu posso vê-lo sem ser visto. Mabel se aproxima pouco depois com um pequeno bule de café, uma xícara de porcelana branca com bordas douradas, e um prato com uma fatia generosa de bolo de chocolate.
Mabel – Última fatia. Pensei em esconder pra mim… mas achei que hoje você precisava mais. Diz, piscando.
Eu – Você me salva mais que o desfibrilador. Brinco, e ela ri, afastando-se com passos leves.
Sirvo o café com calma. O aroma é forte, encorpado, quase um abraço. Dou uma primeira garfada no bolo e… me permito fechar os olhos. Chocolate meio amargo, com um leve toque de menta. Macio. Quente. Derrete na boca como se tentasse me convencer a ficar mais um pouco no mundo.
A sineta toca de novo. Abro os olhos. Um rapaz entra. Alto, traços delicados, sorriso tranquilo, corpo leve, como se tivesse atravessado a manhã sem esforço. Veste roupas simples, mas há algo nele… algo que não sei nomear. Não é beleza, embora ele seja bonito. É presença.
Ele caminha até o balcão e pede um café. Eu deveria voltar ao meu bolo. Mas não consigo. Meus olhos permanecem nele, como se tivessem encontrado algo que procuravam sem saber. Então ele me olha. E sorri. Simples, direto, sem vergonha.
E eu… sorrio de volta. Quase sem querer. Quase sem conseguir evitar. Ele não desvia. Continua bebendo o café, mas agora mantém o olhar. Como se estivéssemos conversando sem palavras.
De repente, ele aponta sutilmente para a cadeira à minha frente. Quase como quem pergunta: “posso?”. Eu hesito, só por um instante, e então assinto com um pequeno gesto de cabeça. Ele se levanta com a xícara nas mãos e vem até mim. Calmo. Como se fosse o mais natural do mundo sentar à mesa de um estranho. Ele se aproxima devagar, a xícara nas mãos, os olhos ainda nos meus. Senta-se sem hesitar, como se a cadeira já o esperasse.
Rapaz – Posso? Pergunta com o sorriso já prestes a nascer.
Eu – Claro. Respondo, com um leve aceno.
Ele se acomoda e estende a mão. – Lucien.
O nome soa limpo, suave. Quase antigo. Aperto sua mão. Quente, firme.
Eu – Vian.
Lucien – Vian… Repete, como quem prova o som com cuidado. Então sorri. – Posso arriscar? Médico?
Dou uma risada. – O que me entregou? Pergunto, olhando para mim mesmo, percebendo a calça amarrotada, a camisa meio solta do jaleco, as olheiras de plantão.
Lucien – É o jeito de quem olha tudo, mas tenta parecer distraído. E o estetoscópio ajudou um pouco. Diz, com um sorriso preguiçoso.
Eu – E você? Pergunto. – O que faz?
Lucien – Sou escritor. Estou me mudando pra cá. Resolvi tentar uma nova cidade…
uma nova vida, talvez.
Eu – Que tipo de livro você escreve?
Ele se abaixa e tira da pasta um pequeno volume de capa azul-marinho. Capa macia, com letras douradas: “Sob as Estrelas”.
Lucien – Histórias para crianças. Mas às vezes disfarço poemas de conto. Ou contos de poema.
Ele me estende o livro. Abro devagar, folheando as primeiras páginas. Os versos são curtos, quase sussurros. “Toda estrela já foi medo / até virar luz.” Sorrio, tocado.
Eu – É bonito. Digo, começando a fechar o livro para devolver.
Lucien – Fica com ele. É um presente.
O gesto me desconcerta. – Obrigado.
Ele se acomoda mais na cadeira, e por um instante, apenas me observa.
Depois pergunta. – Posso fazer uma pergunta… pessoal?
Hesito. Mas algo nele me deixa à vontade. Assinto com um breve movimento de cabeça.
Lucien – O que significa o seu nome?
Sorrio de leve. – Vian Whitmore. Significa algo como “vida em busca de clareza”.
Lucien sorri, como se acabasse de ouvir algo sagrado. – É lindo.
Ficamos em silêncio por um instante. Um silêncio bom. Denso. Aquele tipo de pausa em que os olhos falam. Onde o tempo parece ter desacelerado só para nós dois. Então… meu celular vibra. Alerta vermelho. Leio a notificação na tela. “Cirurgia de emergência.” Precisam de mim. Me levanto rápido, o coração acelerado pela urgência.
Eu – Desculpa… eu preciso ir. Foi um prazer…
Lucien – Foi... Ele diz, com aquele mesmo sorriso tranquilo.
Saio quase correndo, o pequeno livro ainda na mão. Quando chego à porta, olho por cima do ombro. Ele ainda está lá. Me olhando. E por alguma razão que não entendo… Esse olhar me acompanha o resto do dia.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 23
Comments
Liriel Serafim
caramba
Simples, porém tão bom de ler, nao cansa é suave e agradável.
parabéns
2025-09-01
1
Laura Roberta
Essa é a morte, e ela engana bem /Chuckle//Proud/
2025-08-10
1
Laura Roberta
ser médico deve ser dureza/Frown/
2025-08-10
1