Capítulo Dois

“Ela não sabia o nome do que viu. Mas soube, no instante em que sentiu, que aquilo não lhe pertencia.”

– Fragmento do Caderno Azul, autor desconhecido

É só mais um. Mais um mortal em sua reta final. O corpo já dá sinais. O tempo se encurta ao redor dele como uma corda invisível.

Tenho o acompanhado há dias. Venho fazendo isso… com certa frequência. Não porque seja necessário. Mas porque… comecei a ouvir. Sim, ouvir. Há algo nos últimos sussurros dos vivos que tem me chamado atenção. Uma doçura quase insuportável, uma melancolia persistente. Palavras que não fazem sentido algum, mas que retornam de boca em boca: "Fica." "Amor." "Não vai agora." Não entendo. Mas… quero entender.

O jovem entra na cafeteria como se o dia ainda tivesse tempo para recomeçar. Ele não vê o fim que se aproxima. Nenhum deles vê. Os mortais são assim... fazem rituais pequenos, quase infantis, como se o próximo gole de café os tornasse eternos.

Sento-me ao lado da sombra dele, como costumo fazer. Ninguém nota. Ninguém nunca nota. Ele pede um café. O garçom sorri. Tudo segue o padrão de sempre. Mas então, algo se altera. É sutil. Um pequeno desvio. Uma quebra sutil. Como uma brisa onde não deveria haver vento. Olho para o outro lado do salão. E vejo “ele”.

Não o rapaz do fim. O outro. Sentado à mesa de canto, perto da janela, com os olhos semicerrados de cansaço e as mãos ainda marcadas por algum esforço recente. Não está prestes a morrer. Não está nem próximo. Mas há algo nele. Um peso silencioso. Uma luz que parece lutar para continuar acesa. Não sei o que é. Mas meus olhos permanecem.

E então acontece. Os dois se olham. É uma troca breve. Um gesto simples. Um pequeno sorriso. Mas o que nasce ali, naquele instante minúsculo entre um olhar e outro, é algo que eu nunca vi.

Sinto… um ruído. Não no ar. Dentro de mim. Um estremecimento. Como se algo antigo, esquecida, tivesse cedido sob o toque de algo leve demais para pesar.

Eles se aproximam. O som das vozes me escapa, mas a cadência da conversa permanece. E o que quer que esteja crescendo entre eles… não é medo. Não é perda. Não é fim.

Não é meu.

Pela primeira vez, não compreendo o que vejo. E isso me inquieta. Quero saber mais.

Quero entender. E então, ele, o que carrega o cansaço nos olhos e o jaleco branco como manto, se levanta. Um alarme no seu aparelho toca. Algo urgente o chama de volta.

Ele se despede. Apressado. Mas ao alcançar a porta, volta o rosto. Lança um último olhar. Não para mim. Mas é como se fosse. E nesse olhar, há um brilho que me prende. Não porque ele esteja partindo. Mas porque, por alguma razão que não sei nomear… quero que ele fique.

***

A cena é sempre a mesma. Uma freada. Um corpo. O som seco da colisão. O sangue começa a escorrer antes que os gritos comecem.

Mas, dessa vez… Não é apenas mais um fim. Eu o sigo. O rapaz que, há instantes, sorria com o gosto do café ainda na boca. Ele vira a esquina. Atravessa a rua. O carro surge sem aviso... e o corpo dele voa como um suspiro arrancado do peito do mundo.

O tempo desacelera. Eu me aproximo. Seus olhos ainda estão abertos. Surpresos. Vivos.

Por mais alguns instantes. O som da sirene é distante, como um lamento que não chega a tempo. Quando o colocam na maca, eu já estou ali. Perto. Sempre estou. Na sala de trauma, mãos apressadas o despem, conectam sondas, gritam comandos.

Plantonista – Pressão caindo!

Enfermeira – Saturação em queda!

Plantonista – Hemorragia abdominal! Pode ser baço rompido!

E então… ele entra. O rapaz de jaleco branco. Seus olhos encontram o corpo na mesa. Ele paralisa por um instante. É o mesmo que sorriu na cafeteria. O mesmo com quem dividiu palavras sem peso, mas cheias de algo que nem eu compreendo.

Vian – Eu vou entrar na cirurgia! Diz, firme.

Enfermeira chefe – Mas você acabou de sair de um plantão, Vian… Alguém tenta argumentar.

Vian – Eu vou!

Não há mais o que dizer. Dentro da sala cirúrgica, o mundo se fecha num círculo de luz. Vian está com as luvas calçadas. O olhar afiado, mas tremendo por dentro. Ele se inclina sobre o rapaz. Faz a incisão. O sangue escapa, teimoso. A vida escorre, cansada. O coração enfraquece. E o monitor… torna-se uma linha.

Eu me aproximo. É minha função, afinal. Estendo a mão. Mas antes que eu toque…

Vian – Não! A voz dele rompe o silêncio. – Carrega o desfibrilador. Carrega agora!

Anestesista – Estamos perdendo ele!

Vian – Não. Ele vai ficar. Vai ficar…

E eu paro. Eu... que nunca parei. Eu... que nunca precisei decidir. Mas agora… Agora há algo novo. Algo que pulsa em mim, que não é humano, mas me arrasta mesmo assim. Não é compaixão. Não é piedade. É… curiosidade. Desejo. Um impulso inexplicável.

Ele quer que esse rapaz viva. Não como um médico salvando um corpo, mas como alguém tentando impedir que algo precioso desapareça. E eu percebo... se quero entender o que vi naquela mesa de canto, se quero compreender o que nasceu entre olhares… preciso fazer algo que nunca fiz: ficar. Algo em mim… quer ser olhado como ele foi. Quer ser tocado por aquelas mãos sujas de sangue e esperança. Quer entender aquele olhar, aquela fome de manter.

No instante entre o último batimento e o choque do desfibrilador, eu atravesso. Tomo o corpo. Não para salvá-lo. Mas para ocupar o que ele deixou. Como uma roupa ainda quente. Como um eco que não se dissipou. Sinto a pele. A gravidade. O frio. O gosto amargo do sangue e do café ainda na língua. Então apago.

***

E quando meus olhos se abrem… A primeira coisa que vejo é ele. Vian.

A luz do centro cirúrgico já não está ali. Agora são sombras suaves. Uma penumbra calma. Estou deitado. Em um quarto. O mundo está pesado. A gravidade me prende.

O ar entra nos pulmões com esforço. A luz me fere os olhos. Há sede. Dor. Um frio úmido nos pés. Minha pele parece estranha. Sensível demais. Tudo me toca ao mesmo tempo. Cada som, cada cheiro, cada ruído pequeno, tudo é ensurdecedor.

Sinto tudo. Tudo. E isso… me apavora.

Um som escapa da minha garganta. Um grito. Baixo, rouco, de puro espanto. Então ele me toca. A mão de Vian envolve a minha. Firme. Quente.

Vian – Ei… está tudo bem.

Sua voz. Tão próxima. Tão… real.

Vian – Você está no hospital, lembra? Você está bem agora.

Não estou. Não sei o que estou. Mas o toque dele... ancora. Aos poucos, o ruído diminui. As sensações se aquietam. O corpo obedece. E pela primeira vez, eu respiro.

Vian – Vai ficar tudo bem. Diz ele, com um sorriso cansado. – Eu vou te dar algo pra dormir um pouco, tá?

Quero negar. Quero permanecer. Mas seus olhos dizem: “confie em mim”. E sem entender o porquê, eu confio. Assinto com um gesto frágil. Ele injeta algo no soro. Sua mão ainda na minha. A última coisa que vejo antes de fechar os olhos é o rosto dele. E antes que o mundo desapareça sob o véu do sono… eu sonho.

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Comments

Laura Roberta

Laura Roberta

Sua escrita tá muito boa autor

2025-08-10

1

Akire

Akire

caramba, kkkkk, vou endoidar, q viciante de se lê, queria lê logo até o final de uma vez uns mil cap, aff

2025-08-11

1

Laura Roberta

Laura Roberta

essa história me lembra a série Encontro marcado, com o Brad Pitty

2025-08-10

1

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