O DIA EM QUE A MORTE SE APAIXONOU
Eu sempre estive aqui.
Não tenho rosto. Nem idade. Não lembro quando comecei, porque nunca houve começo. Sou a pausa entre um passo e outro. O sopro entre uma frase e o silêncio. Sou o que resta quando tudo o mais se vai.
Sempre estive aqui.
Enquanto os homens inventavam deuses, guerras, promessas... enquanto construíam pontes e as queimavam... enquanto se feriam por amor e se curavam por ódio, eu os observava.
Mas nunca participei. Nunca desejei. Nunca me comovi. Nunca me questionei.
Passei pelas eras como uma sombra que não toca o chão. Cruzei palácios e favelas, templos e ruínas, presenciei coroações, assassinatos, suicídios e nascimentos. Estava lá quando reis expiraram e quando crianças dormiram pela última vez. E em todas as vezes, fui só isso: presença no fim.
Quando minha hora chegava, eu vinha. Sem pressa, sem violência. Me aproximava e era aceita, às vezes com lágrimas, às vezes com resistência, mas sempre com certeza. Eu era... e sou, inevitável. A última companhia.
E mesmo assim... nunca me senti parte.
Não compreendia os vivos. Não compreendia seus rituais, suas dores tão frágeis, suas esperanças tão insistentes. Tudo parecia exagerado, efêmero. Eles eram ruído, e eu era silêncio.
Até que comecei a escutar. Não sei quando. Talvez tenha sido uma voz muito jovem, ou muito velha. Alguém que, ao se apagar, sussurrou um nome. Ou talvez tenha sido uma risada lembrada no fim, dita com lágrimas. Algo me tocou. Um som. Um gesto. Um suspiro. E depois disso... nunca mais foi igual.
Comecei a perceber o que diziam ao morrer. Não sobre mim, nunca fui o assunto principal. Falavam de que sentiam. Do que não fizeram. Do toque que faltou, do beijo que não deu tempo. Falavam de desejos que resistiam mesmo diante de mim.
E então ouvi aquela palavra: “Amor”.
Não entendi. Não fazia sentido. Dor, prazer, medo, perda, essas coisas são simples. Lógicas. Mas amor... era caos. Muitos morriam por ele. Alguns se agarravam a ele como a última âncora. Outros, mesmo ao meu lado, ainda o chamavam como se pudesse salvá-los.
Foi assim que a curiosidade nasceu em mim. Pequena. Insistente. Uma rachadura silenciosa no mármore de tudo que eu era. Passei a chegar um pouco antes. A observar mais de perto. A ouvir com mais atenção. E aos poucos, uma pergunta começou a se formar. Não sobre eles. Mas sobre mim.
“O que seria amar?”
Eu, que não sinto. Eu, que não tenho coração, nem memória, nem lágrimas. O que seria amar para mim?
Então, aconteceu. Era uma manhã comum. Fria, pálida, indistinta de tantas outras que já presenciei. Um café qualquer, numa rua qualquer, em meio ao burburinho dos vivos. E lá estava ele.
Jovem. Cansado. De jaleco branco e olhos que carregavam mais morte do que deveriam. Mas ainda assim... havia algo nele. Uma luz teimosa, como se insistisse em arder no escuro. Algo que não apagava.
E quando o vi sorrir, mesmo cansado, mesmo sozinho, algo se repuxou dentro de mim. Um fio. Um nó. Um início. Eu não o levei. Eu não fui embora.
Eu fiquei.
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Atualizado até capítulo 23
Comments
João Dos santos
gostei do capítulo
2025-08-21
0
Laura Roberta
hmmm interessante /Chuckle/
2025-08-10
1