A Escola Municipal de Artes Aurora Nunes amanheceu sob um céu encoberto, de tons acinzentados, como se o próprio tempo estivesse suspenso. Folhas secas cruzavam o pátio como bilhetes esquecidos. O som distante de um piano, ecoando dos andares superiores, se misturava ao ruído suave do vento. Era quarta-feira, e algo na atmosfera da escola parecia prestes a mudar.
Marina Costa, a nova professora, chegou cedo. A sala dos professores ainda cheirava a café fresco e poeira de livros antigos. Suas botas faziam pouco som contra o chão encerado. Com trinta e quatro anos e um currículo sólido em arte-educação interdisciplinar, ela era conhecida por uma abordagem firme, quase obstinada, mas também por ser alguém que enxergava além do que os olhos ofereciam. Vinha de escolas onde os alunos vestiam fardas e carregavam pressa no bolso. Ali, tudo parecia mais lento. Mais frágil.
Ela folheou as listas de turma quando um nome chamou sua atenção: Isadora Martins Valentini Pirelli.
Nenhuma nota. Nenhuma participação registrada. Nenhum projeto entregue.
E, mesmo assim, o nome constava entre os alunos ativos do terceiro ano.
Franziu o cenho. Pegou a ficha com mais atenção, dados corretos e frequência baixa, mas constante. Um campo de observações que estava vazio.
— Professora Marina? — chamou uma voz gentil.
Marina se virou. Era o diretor, Renato Silveira, um homem de terno azul-marinho, voz calma e olhos que já haviam visto mais dor do que deixavam transparecer.
— Bom dia — respondeu ela, fechando a pasta.
— Já está se inteirando dos alunos?
— Tentando. Mas… há um nome que me chamou atenção. Isadora Pirelli.
O diretor assentiu devagar.
— Esperava que esse nome surgisse cedo em sua lista.
— A ficha dela está, digamos, incompleta. E, francamente, não entendo como ela ainda está matriculada. Em qualquer outra escola, ela já teria sido desligada.
Silveira deu meia-volta e fez sinal para que ela o acompanhasse. Conduziu-a até sua sala. Havia partituras emolduradas nas paredes, um quadro de giz ao fundo com anotações sobre Chopin, e sobre a estante, uma foto em preto e branco: uma menina ao piano, ao lado de uma mulher sorridente.
Silveira indicou a cadeira à frente da mesa.
— Isadora é um caso especial.
— É o que todos dizem quando não querem falar sobre o real problema — disse Marina, mais direto do que planejar.
O diretor não se ofendeu.
— Ela perdeu a mãe neste prédio. Especificamente na sala de concertos, durante sua apresentação anual, sofreu uma dissecção de aorta. Isadora tinha doze anos e estava na primeira fileira admirando a mãe mais uma vez.
Marina se endireitou na cadeira.
— A mãe dela era...
— Clara Martins Valentini. Ex-aluna e depois professora desta escola. Pianista reconhecida internacionalmente. E também era a alma viva desta instituição.
Ele apontou para a foto na estante.
— Desde aquele dia, Isadora não falou mais. Não tocou mais. Não escreveu. Mas continua vindo. Sempre à mesma hora. Sentada ao fundo. Com os fones nos ouvidos. Sem dizer nada. Sem fazer nada.
— E vocês mantêm a matrícula?
— Sim.
— Sem notas? Sem entregas?
Silveira recostou-se na cadeira. Seu tom não era defensivo. Era um convite à escuta.
— Marina, você acredita que todo ser humano tem direito à linguagem?
— Claro.
— E acredita que a arte é uma forma legítima de linguagem?
— Mais que legítima. Essencial.
— Então me diga: o que você faria se uma aluna tivesse perdido o idioma que a mantinha viva? Se a única forma de linguagem que ela conhecia fosse arrancada diante dela, em uma sala cheia de espectadores silenciosos?
Marina engoliu em seco.
— Eu...
— Isadora está aqui porque esse prédio é o único lugar onde ela ainda tenta lembrar como se fala. E agora, com você, talvez tenha uma chance real, ou vai fingir que ela não existe como todos os outros professores?
Ele entregou à professora uma folha dobrada.
— Ela desenhou isso ontem, na sua aula. Deixou de embaixo da carteira.
Marina desdobrou. Era um desenho a lápis. Dois fones de ouvido se encontravam no centro. Entre eles, uma flor brotava — frágil, quase apagada, como se feita por alguém que tivesse esquecido como desenhar beleza… mas ainda assim tentasse.
— Mesmo o silêncio é uma partitura — disse o diretor.
Marina permaneceu em silêncio.
— O que espera de mim? — perguntou, por fim.
— Que não a obrigue a falar. Mas que a convide a lembrar.
Naquela mesma tarde, Marina entrou em sala com outro olhar. Observava os alunos como se fossem livros com as páginas coladas. Aos poucos, a leitura exigia paciência, e tato.
— Hoje, quero que desenhem o som de um sentimento — disse, ao iniciar a aula. — Não objetos. Não cenas. Apenas o som de algo que vocês sentem.
Houve risos, suspiros, olhares estranhos. Mas logo os rabiscos começaram.
Isadora não se mexeu.
Marina deixou um lápis cinza em sua mesa. E um post-it com a palavra “lembrança”.
No final da aula, discretamente, Marina recolheu os papéis. No de Isadora, estava o mesmo desenho: fones, flor. Mas agora, sombras mais profundas. A flor parecia querer murchar, mas insistia em crescer.
Na semana seguinte, Marina propôs uma nova atividade.
— Quero que tragam um objeto pessoal. Algo pequeno. Algo que signifique muito, mesmo que ninguém entenda.
Luan levou uma palheta de violão do avô.
Ana Clara trouxe um colar que ganhou da mãe.
Isadora chegou com um guardanapo amassado.
Marina o colocou sobre um pano de veludo.
— Toda forma guarda uma história — disse. — E toda ausência também é um traço.
Naquela noite, Isadora desenhou dois olhos, um par de mãos e um teclado incompleto.
No canto, discretamente, o mesmo símbolo que Clara Valentini usava em suas partituras.
Na penúltima semana de novembro, Marina fez algo inesperado. Conseguiu autorização para levar os alunos à sala de concertos, fechada desde o incidente.
O piano coberto por um lençol branco parecia um altar abandonado.
— Ninguém vai tocar — disse Marina. — Só escutar.
Ela mesma tocou notas soltas, sem melodia. Como se procurasse um som antigo. Os alunos escutaram. Em silêncio.
Isadora permaneceu perto da porta. Mas não saiu.
Naquela noite, desenhou um piano com raízes crescendo de dentro da terra. Florescendo em silêncio.
Na última aula de novembro, Marina entregou envelopes manuscritos a cada aluno. Dentro continha um convite:
Projeto Aurora – Uma Exposição Silenciosa
Tema: O que não pode ser dito
Data: 15 de dezembro
Sala de Artes Visuais
No rodapé:
“Não precisa explicar. Só entregar. Pode ser um desenho, um objeto, um som. Mas tem que ser seu.”
Isadora não reagiu. Mas dobrou o convite com cuidado. E guardou no bolso.
A exposição foi montada sem legendas, sem explicações.
Um menino trouxe uma flauta quebrada.
Uma garota, cartas rasgadas.
Isadora entregou sua pintura: os fones de ouvido e a flor.
No verso, um bilhete:
“Não desenhei para ser vista. Desenhei para lembrar que ainda posso sentir.”
Marina não adicionou moldura. Apenas posicionou a tela ao centro, sobre um cavalete simples.
O diretor Silveira passou por ali. Observou em silêncio. E apenas assentiu.
Na saída, Luan se aproximou de Marina:
— Foi ideia sua esconder o nome dela?
— Não. Ela deixou assim. E eu respeitei.
— Talvez ela não queira que saibam.
— Ou talvez queira que sintam, antes de saberem.
Luan sorriu.
— Ela ainda está aqui.
— E enquanto desenhar — disse Marina — mesmo em silêncio, vai continuar a estar.
A chuva começou fina naquela manhã, como se o céu hesitasse entre chorar e guardar suas lágrimas. As gotas escorriam pelas vidraças da sala de aula, e Isadora, sentada no fundo, mantinha os olhos fixos nelas, como se tentasse decifrar o que havia por trás da névoa.
Os fones repousavam sobre os ouvidos como de costume, mas hoje, mais do que esconder-se atrás da música, ela parecia ausente da própria existência. Marina, a nova professora de Artes Integradas, observava com o canto dos olhos. Tinha notado que, desde que Isadora voltara a evitar os pátios e a sala de concertos, algo nela estava ainda mais retraído.
Na semana anterior, Marina havia proposto uma nova visita ao auditório para uma sessão sensorial — um exercício livre para que os alunos explorassem os sons e os vazios da música instrumental. Isadora hesitou em ir, mas, para surpresa de todos, levantou-se e foi. Caminhou atrás do grupo, em silêncio, como uma sombra que ainda não decidiu se quer ser luz.
A sala de concertos, parecia diferente daquela vez.
Os refletores apagados, o som ambiente leve, quase imperceptível. Os alunos se espalharam pelo salão em silêncio, deixando-se guiar pelas notas suaves que vinham dos alto-falantes. Marina observava cada um com atenção, como quem semeia e espera a colheita.
Isadora permaneceu de pé, imóvel. Os olhos percorriam o espaço, mas não como alguém que busca beleza. Havia uma tensão em seu olhar — uma guerra silenciosa sendo travada dentro de si. Ela se aproximou do palco devagar, até parar diante da primeira fileira de cadeiras.
Foi ali que tudo havia acontecido.
Ela fechou os olhos por um segundo. E nesse segundo, o mundo pareceu gritar de volta.
O som abafado dos aplausos. O olhar da mãe. O toque da mão. A queda. O grito mudo.
Quando os olhos de Isadora se abriram de novo, ela estava tremendo. Marina a observava de longe, com cautela, mas não interveio. Sabia que havia momentos em que o silêncio era mais honesto que qualquer palavra.
Naquela noite, Isadora não jantou. Trancou-se no quarto, desligou os fones, apagou as luzes e apenas respirou no escuro.
Dois dias depois, Marina anunciou à turma uma visita especial ao Conservatório Municipal de Música. Uma exposição temporária sobre compositores brasileiros modernos havia sido montada lá — incluindo uma ala sobre músicos locais que marcaram história na região.
— É uma oportunidade única de ver como a música se entrelaça com a memória. Com a identidade. — disse ela, olhando diretamente para Isadora, mesmo sem esperar resposta.
A turma vibrou. Excursões significavam sair das salas, conversar nos corredores, tirar fotos escondidas com os celulares. Isadora, no entanto, não demonstrou qualquer reação.
No dia da visita, ela apareceu pontualmente no pátio. O uniforme impecável, os fones nos ouvidos, os olhos baixos. Marina a esperava ao lado do ônibus, e por um breve instante, as duas se olharam. Mas logo Isadora desviou o olhar e subiu, sentando-se na última fileira do veículo.
A viagem até o conservatório foi curta. O prédio branco com colunas modernas contrastava com o céu cinzento. Dentro, salas de vidro expositivas abrigaram partituras, retratos antigos, fones de escuta com trechos de músicas, recortes de jornais e figurinos.
Marina orientava os grupos com paciência, deixando que cada aluno se movesse no próprio ritmo.
Isadora caminhava sozinha entre as vitrines, os olhos passando por nomes que pouco significavam para ela.
Até que parou.
Ali, na seção de artistas locais, o nome de sua mãe, Clara Guimarães, aparecia em letras douradas.
"Clara Guimarães – A Voz que Tocava Sem Palavras"
Havia uma foto grande emoldurada: Clara sentada ao piano, sorrindo para a câmera. Os olhos dela, tão vivos, pareciam encontrar os de Isadora como se ainda houvesse tempo.
A flor no cabelo, a postura leve, o vestido branco do último concerto. Ao lado da imagem, um texto descritivo sobre sua carreira, sua influência musical e a sua morte repentina, durante uma apresentação beneficente. "Uma perda que calou os palcos da cidade."
Isadora estremeceu. Os fones continuavam tocando algo suave, mas ela não ouvia mais nada. Tudo ficou embaçado. O som, a luz, o ar.
Ela recuou dois passos. Três. E então saiu correndo pelos corredores, empurrando portas de emergência até encontrar uma área externa. Sentou-se no chão úmido de um pátio interno, o rosto escondido entre os joelhos.
Marina demorou a encontrá-la, mas quando chegou, não disse nada. Sentou-se ao lado, sem tocar. Sem perguntar. Apenas respeitou o silêncio compartilhado.
Na semana seguinte, Isadora não apareceu na escola.
Nem na outra.
As faltas acumulava se no sistema, e Marina, preocupada, foi até a direção conversar com Rafael, o pai da menina, que havia aparecido para dar um fim a dor da sua filha.
Na sala da coordenação, o homem estava sentado, com as mãos entrelaçadas e os olhos vermelhos de cansaço.
— Ela não fala mais comigo, professora — disse ele, a voz embargada. — Quatro anos desde... desde que tudo aconteceu. Achei que o tempo curaria, mas talvez tenha sido o contrário.
Marina não respondeu de imediato.
— A escola pode ajudar. Ela não precisa ser forçada a tocar, ou a se apresentar. Mas precisa de espaço. E de tempo. Talvez mais tempo do que imaginávamos.
— Mas até quando? Ela passa os dias trancada no quarto. Eu ouço as músicas tocando por trás da porta, mas ela não responde. Não reage. Agora essa exposição foi demais. Acho que manter ela aqui tem feito mal. Talvez... talvez seja hora de tirá-la daqui. - O pai disse cansado se tentar escutar novamente o fruto do amor dele com sua falecida esposa.
Marina sentiu o peso daquela possibilidade. Respirou fundo.
— Senhor Rafael, e se... e se, antes de decidir isso, tentássemos outra coisa? Eu posso trabalhar com ela individualmente. Não como professora, mas como alguém que acredita que a arte pode salvar. Mesmo que ela não queira ser salva agora.
O homem encarou a professora por longos segundos.
— Tudo bem. Mais uma chance. — murmurou. — Mas se ela afundar de novo, eu não vou permitir que continue sofrendo aqui.
Na terceira semana, Isadora voltou.
Chegou atrasada, entrou na sala sem olhar ninguém e sentou-se no fundo, como sempre.
Marina apenas assentiu em silêncio. Não fez perguntas, mas naquele dia, ao final da aula, deixou uma partitura dobrada sobre a carteira da menina.
Sem nome. Sem instruções.
Apenas notas em forma de silêncio.
Isadora olhou com desdém para o papel como se fosse uma lembrança em forma de código. Não disse nada, mas guardou o papel com cuidado dentro da mochila.
E naquela noite, pela primeira vez em anos, ela abriu o caderno antigo de partituras escondido na última gaveta da escrivaninha.
O passado ainda doía.
Mas agora, havia uma rachadura no muro.
E, às vezes, por onde racha, entra a luz.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 26
Comments
Anrai Dela Cruz
Adorei como a autora descreve a beleza do amor verdadeiro nesta história.
2025-08-02
0