O novo aluno

A escola parecia sempre a mesma para Isadora: corredores acinzentados, barulho abafado pelos fones, carteiras rangendo e professores falando como se estivessem muito longe.

Ela sentava na última fileira da sala, ao lado da janela, onde o sol batia suave. Lá era seu abrigo invisível.

— Alunos, atenção. Temos um novo colega — anunciou a professora de Literatura, com um sorriso que tentava ser leve.

O murmúrio começou.

Isadora não olhou, estava desenhando formas repetitivas no canto da folha, fingindo interesse, mas então ouviu uma voz.

— Oi. Eu sou o Luan.

Ele falava baixo, quase como se cantasse, contra a própria vontade, Isadora ergueu os olhos. O garoto era magro, tinha cabelo castanho bagunçado e uma pulseira de couro no pulso. Vestia uma camiseta preta com o nome de uma banda que ela conhecia: “Versos em Fúria” — um grupo alternativo de MPB que Clara ouvia em vinil.

Por reflexo, seu peito apertou.

A professora apontou a carteira vaga ao lado dela.

— Pode se sentar ali, Luan.

Isadora prendeu a respiração.

Luan sentou, deu um sorriso tímido e abriu seu caderno, havia rabiscos, letras de música e símbolos feitos à caneta azul.

Isadora desviou o olhar, mas o som da cadeira arrastando, da mochila abrindo e da voz dele ecoando em sua direção atravessaram os fones.

— Gosta de música? — perguntou.

Ela fingiu não ouvir, virou o rosto para a janela, deixando os fones cobrirem qualquer som que pudesse vir dele.

Durante toda a aula, ele tentou puxar conversa, falando de música, de letras, até de bandas que gostava. Ela não dava atenção. O silêncio dela era um muro, mas ele parecia não se importar.

No intervalo, Isadora caminhava pelo pátio, evitando os grupos barulhentos. Luan se sentou sozinho na Praça dos Ecos, tirou o violão da mochila e começou a tocar.

Era uma música simples, sem pretensão, mas cheia de sentimento — como um sussurro para quem quisesse ouvir.

Isadora parou a alguns metros, os olhos meio semicerrados, ela conhecia a melodia escolhida a primeira que sua mãe ensinará aos seus 8 anos de idade após várias insistência da mesma para aprender a tocar alguma coisa. Ela não queria estar ali, mas a melodia parecia tocar algo esquecido dentro dela e sem perceber, ela ficou ali até o final da música, imóvel e silenciosa.

Ao voltar para a sala, Luan a esperava na porta.

— Gostou da música? — perguntou com um sorriso tímido.

Ela hesitou. Então balançou a cabeça em silêncio.

— Sei como é difícil deixar o mundo entrar de novo. A música, pra mim, nunca foi só pra fugir. É pra se reencontrar — disse ele, olhando nos olhos dela.

Isadora olhou para Luan e fez sinal que saísse da frente.

— Você não precisa falar nada agora. Só quero que saiba que estou aqui — continuou ele, com calma.

No fim do dia, já em seu quarto, Isadora abriu o caderno azul de letras, folheou as páginas com letras que ninguém nunca tinha ouvido, palavras guardadas a sete chaves. Em cima da mesa, uma folha do caderno de Luan repousava: rabiscos, acordes, versos.

Ela tocou aquela folha com o dedo, hesitando.

Na manhã seguinte, Luan tentou se aproximar de Isadora novamente, durante o intervalo. Ele se aproximou com seu jeito calmo, um violão pendurado nas costas e um sorriso que buscava uma brecha.

— Ei, Isa… quer ouvir uma música nova que escrevi?

Ela o encarou por um instante, mas virou o rosto de imediato, afastando-se.

O som dos seus fones abafava a voz dele, e ela apertou os aparelhos contra as orelhas, como se assim pudesse bloquear não só as palavras, mas tudo aquilo que ela não queria enfrentar.

No corredor, alguns colegas a observavam.

Sussurros e risadinhas surgiam:

— “Olha lá, a menina dos fones de ouvido. Parece que vive no mundo dela.”

— “Ninguém entende ela. Nem fala com ninguém.”

— “Deve ser porque é estranha mesmo.”

Isadora ouviu tudo, mesmo com a música pulsando nos ouvidos. Era um misto de raiva e tristeza que a fazia querer desaparecer.

Ela não queria amigos. Não queria papo. Não queria abrir o peito.

Naquele dia, saiu da escola mais cedo, caminhando apressada pela Rua das Vozes Calmas, sentindo as notas da música invadirem sua cabeça — a trilha sonora de uma solidão que ninguém via direito.

Em casa, ela se trancou no quarto, ligou o rádio no volume alto e sentou diante do piano, mas não tocou.

As notas que saíam dos fones eram como um abraço invisível — o único contato que ainda conseguia suportar.

Luan, na escola, continuava a tentar encontrar um caminho para ela, mas Isadora, por enquanto, só fugia.

Nos dias seguintes, Isadora seguia o mesmo ritual: entrava na escola com os fones nos ouvidos, os olhos no chão e o corpo invisível.

Luan tentou algumas vezes se aproximar. Um “oi”, um gesto, um sorriso tímido.

Ela desviava, não era grossa. Só… ausente.

Na aula de Literatura, sentava-se no fundo, desenhando linhas invisíveis no canto do caderno. Os professores raramente a cobravam, já sabiam que não adiantava.

No intervalo, caminhando pelos corredores da Escola de Artes Aurora Nunes, Isadora tentou não ser notada, mas não adiantava.

— Lá vem a Isa de novo, com esses fones que nunca tira. — disse Ana Clara, a líder do grupo das garotas populares, com o típico sorriso de escárnio.

— Ela nem conversa com ninguém. Deve achar que é melhor que todo mundo. — completou Caio, o garoto que sempre fazia questão de ser ouvido, mesmo quando não tinha nada a dizer.

Ao lado, Miguel, o amigo fiel de Caio, riu com ar debochado:

— É a garota que só ouve música e ignora a gente. Deve ser meio estranha.

Isadora ouviu, o fone não estava tão alto, mas não reagiu.

A verdade? Aquilo já fazia parte do cenário. Como o som do portão está abrindo de manhã, o sinal que ninguém respeitava, os sussurros que vinham sempre antes do silêncio.

Ela apertou os fones com mais força, deixando que a música preenchesse o vazio.

Luan observava de longe, sentado no banco próximo ao refeitório. Percebeu que, por mais que ela parecesse alheia, havia tensão em seus ombros. Como se ela carregasse o mundo inteiro num corpo que só queria desaparecer.

Na aula de Música, a professora apresentou um novo projeto:

— Teremos um festival interno com apresentações autorais. Pode ser solo, em dupla ou grupo. Quem quiser cantar, tocar, compor ou adaptar algo… essa é a hora de mostrar o que a música representa pra vocês!

Luan imediatamente se empolgou.

Isadora, no entanto, se levantou discretamente, e saiu da sala.

Não por timidez.

Por pânico.

Ela correu até o banheiro vazio, encostou à parede e aumentou o volume no fone. As notas suaves de um piano preencheram o espaço apertado, mas mesmo assim, o peito doía.

“Música representa dor”, ela pensou.

“E dor não se mostra.”

Na saída, esbarrou em Luan no corredor. Ele sorriu, gentil.

— Tá tudo bem? — perguntou ele, sem pressão.

Ela não respondeu

— Porque… às vezes é bom saber que alguém se importa.

Ela não respondeu novamente, apenas se virou e seguiu seu caminho, mais uma vez.

Fugir era mais fácil do que explicar e mais seguro do que se permitir sentir.

Naquela noite, Isadora ficou mais tempo do que o normal diante do espelho. Observava os próprios olhos sem saber exatamente o que buscava ali. Talvez quisesse encontrar o ponto exato onde tudo começou a desmoronar. Ou talvez só estivesse tentando entender por que a voz de Luan ainda ecoava na cabeça mesmo com a música alta.

“Porque… às vezes é bom saber que alguém se importa.”

Essas palavras batiam contra sua resistência como ondas calmas que, aos poucos, desgastaram a muralha.

Ela não queria ceder, mas também não conseguia ignorar.

Na manhã seguinte, chegou à escola no mesmo passo contido de sempre. Fones no volume médio, cabeça baixa, o mundo filtrado por notas musicais, mas algo havia mudado.

No seu armário, entre os livros embolorados de Química e os cadernos com capas rabiscadas, havia um bilhete.

Não era colorido, nem perfumado. Papel branco, letra azul, simples.

> “Essa música é pra quem já quis desaparecer e mesmo assim continuou vindo todos os dias.

Sei que você não quer conversar, mas música também é conversa.

– Luan.”

Dobrado dentro do papel, havia uma folha com cifras e versos:

> “Você que se esconde sob o som,

mas sente o mundo gritando.

Eu escuto, mesmo que você cale,

mesmo que fuja, mesmo que negue.”

Isadora relutou, mas guardou o bilhete com cuidado na contracapa do caderno de Literatura.

Não como quem aceita, mas como quem ainda não sabe o que fazer.

Durante o recreio, Isadora percebeu algo estranho: os colegas estavam mais agitados do que o normal.

— Você viu que o Luan vai cantar no festival? — cochichou Letícia, do segundo ano.

— Disseram que é uma música que ele escreveu pra Isa…— respondeu Ana Clara, com desdém.

— Imagina! O menino mal chegou e já está querendo ser o herói da solitária.

Isadora ouviu tudo, não se virou e nem reagiu, mas por dentro, uma mistura de calor e gelo.

Por que ele faria isso?

Por que ele insistia?

Por que parecia ver algo nela, quando ela mesma não via?

Na aula seguinte, Luan estava quieto. Não tentou puxar conversa, mas antes de sair da sala, deixou outro bilhete dobrado no canto da carteira dela.

> “Você não precisa subir no palco.

Mas se quiser que eu cante por você, só me diga qual música precisa ser ouvida.”

Isadora fechou os olhos, sentiu os dedos tremerem. Era difícil confiar em qualquer um, mas havia algo naquela insistência serena, naquela ausência de cobrança, que fazia seu escudo rachar — ainda que ela tentasse colar os pedaços.

Naquele dia, ao chegar em casa, Isadora se trancou no quarto, pegou seu antigo caderno de partituras e abriu na última música que compôs com a mãe.

Não tocava aquela melodia desde o enterro.

Sentou-se ao piano, seus dedos hesitaram, sentiu um perto no peito e as notas ficaram presas.

Mas então… lentamente…

Os acordes começaram a nascer.

Trêmulos, imperfeitos, cheios de dor e de vida.

Ao final, não chorou, mas também não se escondeu do que sentia.

Guardou a partitura numa pasta, junto com o bilhete de Luan.

Não estava pronta para subir no palco.

Nem para sorrir.

Mas estava começando a ouvir…

A canção que há muito tempo não conseguia escutar.

E naquela noite, pela primeira vez em muito tempo, Isadora dormiu sem música nos fones. O silêncio era desconfortável, mas também necessário — como uma pausa entre dois versos, onde algo precioso pode nascer.

O festival seria dali a uma semana.

Os corredores da Escola de Artes Aurora Nunes estavam cobertos de cartazes improvisados e rabiscos coloridos: “Festival da Canção – Vozes em Movimento”.

Isadora evitava olhar os anúncios. Só o pensamento de um palco a fazia querer desaparecer, mas a presença de Luan crescia em sua rotina — não de forma invasiva, mas constante, como o som de uma música que você não procura, mas começa a acompanhar mesmo sem perceber.

Ele continuava deixando bilhetes.

Pequenos, silenciosos, com trechos de letras, desenhos e até partituras rabiscadas em guardanapos.

Um deles dizia:

> “Às vezes, o que mais dói também é o que mais salva.

A música que você mais teme pode ser a que vai te lembrar que ainda está viva.”

E Isadora começou a responder.

Não com palavras.

Mas com notas.

Tocava à noite, trancada no quarto, e começava a escrever. Pequenas frases, versos soltos, pedaços de si mesma que ela nem lembrava que existiam.

No fundo da gaveta, encontrou uma fita cassete antiga. A etiqueta dizia “Isa – 8 anos” em letras tortas.

Colocou no toca-fitas e ouviu a voz de sua mãe dizendo:

> “Agora é sua vez, Isa. A música é sua casa. Nunca se esqueça disso.”

Aquela voz que o tempo tentava apagar voltava a vibrar por dentro.

Na véspera do festival, Luan a encontrou sentada no banco da Praça dos Ecos.

Ela estava sem fones, se aproximou devagar, como sempre fazia.

— Tá ouvindo alguma coisa agora? — perguntou ele, meio rindo.

Ela apontou, sem olhar, os olhos fixos nas folhas dançando no chão.

Luan sentou ao lado, respeitando o espaço.

— Você escreveu aquela música? A que eu encontrei no seu caderno azul?

Ela assentiu, lentamente.

— É linda. Dói, mas é linda.

Isadora respirou fundo. Então escreveu em um papel.

— Eu não escrevo mais pra mostrar.

Escrevo pra lembrar que ainda sinto.

Luan a olhou com suavidade.

— Mas e se mostrar for a única forma de se curar?

Ela sorriu sem mostrar os dentes. Triste, mas viva.

— Então a gente canta junto — respondeu ele, com firmeza gentil.

Silêncio.

E então ela tirou uma folha dobrada da mochila, era a partitura. Aquela que não tocava desde a despedida, a letra estava rabiscada, com anotações feitas à mão, um rastro de um tempo que ela achava perdida.

Isadora, finalmente olhando nos olhos dele, escreveu no celular

Pode usar a melodia, mas não diz que foi minha.

Luan pegou a folha com cuidado, como se segurasse algo sagrado.

— Tudo bem, mas um dia, você vai subir lá. E vai cantar com a sua voz.

— Eu espero — disse ela.

E naquele fim de tarde, enquanto o céu escurecia em tons suaves de azul e rosa, Luan cantou baixinho para ela, era a primeira vez que aquela canção era ouvida fora das paredes do quarto.

Isadora fechou os olhos.

Não para fugir.

Mas para sentir melhor.

Talvez, pela primeira vez em muito tempo, estivesse pronta para começar…

A reescrever sua história — uma nota por vez.

Mesmo que ainda não fosse o refrão.

Baixar agora

Gostou dessa história? Baixe o APP para manter seu histórico de leitura
Baixar agora

Benefícios

Novos usuários que baixam o APP podem ler 10 capítulos gratuitamente

Receber
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!