A Canção que Eu Não Sabia Ouvir
A sala de concertos estava cheia. Era uma noite comum para o público, mas especial para Isadora. Sentada na primeira fileira, ela ajeitava o vestido e os cabelos com nervosismo infantil, sem conseguir ficar parada. A mãe, Clara Fernandes — aclamada pianista, inspiração e porto seguro — estava prestes a subir ao palco. E, naquele dia, tocaria sozinha. Só ela, o piano de cauda e um vestido azul-escuro de cetim sob a luz morna do palco.
O silêncio caiu como uma cortina invisível. Clara caminhou com serenidade, mas quem a conhecia bem — como Isadora — perceberia a leve tensão escondida nos ombros erguidos, no passo um pouco mais contido.
Ela se sentou ao piano com a postura elegante de sempre, ajeitou o banco, passou os dedos pelas teclas sem pressionar, e antes de tocar, olhou diretamente para a filha.
Sorriu.
Um sorriso silencioso, íntimo, que parecia dizer tudo:
“Você está ouvindo? Essa é nossa.”
As primeiras notas fluíram delicadamente, como uma conversa entre almas.
O piano cantava, hesitava, voltava a respirar. Era uma peça autoral — melancólica, doce, cheia de passagens silenciosas e pausas que diziam mais do que muitas palavras.
Isadora sentiu o peito se aquecer. Era como se, naquele momento, só existissem ela e a mãe no mundo.
Mas então… algo mudou.
Pouco antes da metade da peça, Clara vacilou. Sua mão esquerda hesitou. O acorde seguinte saiu dissonante, quase desafinado. Ela parou. Respirou fundo. Levou a mão ao peito, como quem sente algo rasgando por dentro. Os olhos se apertaram com uma dor que parecia indescritível.
O público achou que fosse parte da interpretação. Alguns riram, surpresos, mas Isadora soube.
Clara tentou continuar.
Ainda tocou mais três acordes com a mão direita, teimando em seguir adiante.
O som ficou trêmulo. As notas, frágeis, pareciam implorar por ajuda.
E então, com um soluço preso na garganta, ela tombou sobre as teclas.
O corpo caiu como em câmera lenta.
O último som foi um acorde grave, acidental, arranhado e triste — como um lamento final.
Um grito veio da plateia. Gente correndo.
Mas Isadora não conseguia se mover.
Os olhos dela estavam fixos na mãe caída — metade sobre o piano, metade sobre o chão. O vestido azul-escuro agora se confundia com a escuridão do palco.
A luz, suave e dourada, continuava acesa.
Mas ali, naquele instante, a música parou.
E com ela, tudo dentro de Isadora também.
O som da sirene ecoou no teatro minutos depois, mas para Isadora, tudo já havia se calado por dentro. Ela não chorou naquele instante. Ficou imóvel, como uma pintura. Os olhos arregalados, as mãos presas no colo. O pai, Rafael, saiu correndo atrás dos paramédicos.Ela não se lembra de tê-lo seguido, nem de quem a conduziu até fora dali. Só se lembra do som — ou da falta dele.
A ausência da música parecia mais dolorosa do que o próprio grito.
Naquela mesma noite, ao chegar em casa, foi direto para o quarto.
Lá estava o piano. O mesmo da infância, onde Clara lhe ensinara a primeira canção.
Isadora fechou a tampa com força, desligou o rádio, jogou fora os CDs e o enterrou junto com o caderno de partituras, toda e qualquer possibilidade de ouvir de novo o que tanto amava.
No dia seguinte, ainda com os olhos secos e o corpo em modo automático, Isadora parou em frente ao pai com uma única frase:
— Eu preciso de um fone de ouvido e um celular.
Rafael hesitou.
— Mas você não quis um nunca, Isa..
Ela apenas apontou para o silêncio ao redor, depois para o peito.
— Agora eu quero.
Desde então, nunca mais tirou os fones.
Mesmo que não houvesse nada tocando.
Eles eram mais do que um escudo.
Eram a lembrança do que ela não queria mais ouvir.
Dois dias depois, no velório, Isadora ainda usava o mesmo vestido da apresentação.
Não por teimosia. Por esquecimento.
Ela observava o caixão fechado, cercado por flores que exalavam um perfume doce e insuportável.
Sentada num banco lateral da capela, com os fones encaixados firmemente, Isadora mantinha os olhos baixos.
Não chorava. Não falava. Apenas existia ali, como se seu corpo estivesse presente, mas sua alma ainda estivesse caída sobre o piano.
Pessoas vinham e diziam coisas que não faziam sentido:
"Ela era luz."
"Que Deus conforte vocês."
"A música dela viverá."
Mas Isadora não queria que a música vivesse.
Queria a mãe.
Queria a risada depois do jantar.
Queria a melodia que Clara cantava toda vez que penteava seu cabelo.
Queria as mãos da mãe apertando as suas no frio da noite.
E foi então que começaram os sussurros.
— Olha isso de fone, no velório da própria mãe.
— Nem uma lágrima.
— Parece uma pedra. Isso é falta de sentimento.
Eram tias, primas, vozes da família da mãe, gente que aparecia só em aniversários, e que agora se achava no direito de interpretar o luto dos outros.
Rafael tentou intervir com um olhar duro, mas não disse nada. Ele sabia que, se forçasse Isadora a tirar os fones, ela desmontaria. Ou se partiria de vez por dentro.
— Ela precisa de tempo, Clarice — sussurrou uma das tias. — Isso aí não é normal. Vai ficar surda de tanta fuga.
Mas Isadora escutava tudo, mesmo sem música, porque, no fundo, os fones nunca foram para ouvir. Foram para não ouvir.
E naquele momento, ela decidiu:
Se todos só conseguissem medir dor pelo barulho que ela fazia…
Então o silêncio seria sua melhor resposta.
Os dias seguintes se arrastaram como sombras longas num corredor estreito. A casa, antes cheia de acordes e cheiros de bolo no forno, agora era só eco e poeira.
Rafael tentou manter a rotina, fazia café demais, lia um jornal em silêncio e evitava olhar para o piano.
Já os tios, primas, vizinhos, vinham cheios de boas intenções.
— Você precisa reagir, Isa.
— Sua mãe não ia querer te ver assim.
— Tira esse fone, menina. Vamos conversar um pouco.
Mas Isadora não queria conversar.
O fone era o único lugar onde o mundo parava de gritar.
Mesmo sem música, ela os usava o tempo todo.No café da manhã, no sofá da sala, até no banho, com medo que o silêncio vazasse por baixo da porta.
— Isso não é saudável — disse a tia uma tarde.
— Ela está fugindo — murmurou outra, achando que Isadora não escutava.
Mas escutava tudo e era por isso que usava os fones, para não ter que ouvir a mãe não estar ali.
Quatro anos depois
O piano continua no quarto, coberto por uma manta cinza, intocado, como um túmulo particular.
Isadora agora tem 17 anos.
Vai à escola com fones de ouvido grandes, roupas neutras, mochila pesada e passos calculados.
Ninguém sabe que ela compõe letras escondidas em um caderno azul. Ninguém sabe que ela ainda sonha — mas não permite escutar os próprios sonhos.
Ela prefere não se apegar a ninguém, nem as palavras doces e as músicas bonitas.
Porque tudo que é bonito…
Pode parar de tocar no meio da apresentação.
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Atualizado até capítulo 26
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