Luan sempre teve um tipo de sensibilidade diferente. Era do tipo que prestava atenção no que os outros não diziam.
E com Isadora, era tudo não dito.
Na manhã de terça-feira, enquanto esperava a professora de Música chegar, ele observava Isa sentada no fundo da sala, como sempre. Fones nos ouvidos, olhar no vazio. Os dedos tamborilavam no estojo como se tocassem um piano invisível.
Ele anotou mentalmente.
Ela ainda sente. Só não deixa mostrar.
Depois da aula, procurou a coordenadora da escola, dona Vera, sob o pretexto de ajudar na organização do festival. Vera, sempre orgulhosa dos alunos talentosos, não demorou a soltar algo:
— Aquela menina, a Isadora, era um prodígio. Tocava com a mãe desde pequena. A mãe dela era Clara Dias, já ouviu?
Luan quase deixou o lápis cair. Conhecia o nome.
— Clara Dias? A pianista?
— Ela mesma. Uma pena... morreu há quatro anos. No palco. Aqui mesmo, na escola.
O estômago de Luan revirou. De repente, tudo começou a fazer sentido. O jeito fechado. O silêncio barulhento. Os fones que não saíam.
Isadora vivia com o eco daquele dia.
Preso nos ouvidos, em suas mãos e em seu peito.
No refeitório, mais tarde, Luan se sentou próximo ao grupo de Ana Clara e Caio, tentando parecer desinteressado. Eles falavam de tudo, menos da aula.
— Aposto que ela nem canta mais porque acha que vai morrer como a mãe — disse Caio, rindo baixo.
Ana Clara revirou os olhos:
— Ela é uma drama queen. Fica se fazendo de vítima porque sabe que todo mundo morre de dó. Mas, sinceramente? Só sabe ser estranha.
Luan apertou a colher com tanta força que quase entortou o alumínio.
Mas não respondeu.
Naquela tarde, passou pela biblioteca e pediu para ver os registros do Festival do ano passado. A bibliotecária, uma senhora atenciosa chamada Dona Eliete, o levou até uma caixa com fotos e panfletos.
Ali estava ela: Isadora, quatro anos mais nova, sorrindo ao lado da mãe, ambas de vestidos azuis, com os dedos entrelaçados sobre o piano.
A legenda abaixo da foto dizia:
“Última apresentação de Clara Martins Valentini. Um legado que jamais se calará.”
Mas para Isadora, o som havia morrido junto com a mãe.
No caminho de volta, Luan parou em frente à casa dos Valentini. Era uma casa silenciosa. Cortinas fechadas, jardim esquecido.
Ele não bateu.
Não naquele dia.
Mas soube que, de alguma forma, precisava encontrar uma maneira de mostrar para Isadora que não era só a dor que podia deixá-la em silêncio.
Era o amor também.
E talvez — só talvez — ele pudesse ajudar a reensinar isso a ela.
No dia seguinte, a professora de música propôs uma atividade prática em grupo. Cada aluno deveria apresentar um trecho instrumental de uma canção conhecida, utilizando apenas objetos da mochila como instrumentos improvisados.
— Podem usar canetas, estojos, latinhas, até os próprios fones de ouvido se quiserem. Criatividade vale nota!
Isadora suspirou fundo. Aquilo era um tormento.
Quando a professora separou os grupos, o nome dela apareceu ao lado de Luan, Caio e Júlia. Ela franziu a testa, já esperando o pior.
Caio foi o primeiro a soltar:
— Ótimo, a muda do fone eterno caiu no nosso grupo.
Luan lançou um olhar cortante para ele.
— Se não vai ajudar, é melhor nem atrapalhar — disse, calmo, mas firme.
Júlia tentou amenizar o clima.
— Vamos só fazer algo simples, ok? Uns toques de ritmo com canetas e o Luan improvisa algo com o violão dele.
Isadora não disse nada. Apenas cruzou os braços e desviou o olhar.
Enquanto os outros testaram os sons nas carteiras, ela colocou os fones e fechou os olhos.
Luan a observou. Percebeu que os dedos dela ainda tamborilavam em ritmo. Não estavam desligados — apenas feridos.
Na hora da apresentação, Isadora permaneceu sentada, deixou que os colegas fizessem tudo, mesmo sabendo que a professora provavelmente iria descontar nota, mas Luan, antes de começar a batida no violão, se aproximou e, quase num sussurro, disse:
— Se você quiser, posso só tocar e ninguém precisa te olhar. Eu só queria ouvir o seu tempo.
Ela não respondeu.
Mas, por um instante, tirou um dos fones.
Luan começou a batida com suavidade. Nada de espetáculo. Apenas um compasso regular, como o som de um coração tentando se manter estável.
Isadora, sem perceber, tamborilou os dedos no colo, era pouco, mas foi um começo.
No fim da aula, ela foi a última a sair.
Luan ainda estava guardando o violão quando ouviu passos atrás dele.
Ela parou, por um segundo, respirou fundo e abriu a boca para falar algo, ela o encarou com olhos frios, mas não raivosos. Depois virou-se e saiu sem dizer nada.
Luan sorriu de leve.
Isadora subia as escadas da escola com os fones nos ouvidos e o passo apertado. A batida da música ecoava dentro do peito, como uma armadura contra o mundo lá fora.
Mas naquele dia, a música já não abafava tudo.
Os dedos ainda lembravam o compasso do violão de Luan no dia anterior. Aquilo a irritava.
Era como se ele tivesse plantado um som dentro dela. Um som novo. E ela não sabia se queria ouvi-lo.
— Tá ensaiando pra tirar os fones agora? - Murmurou Ana Clara ao cruzar com ela no corredor. Caio riu do comentário.
Isadora não reagiu, mas o comentário ficou martelando.
Não por ofensa, mas por um tipo de verdade inconveniente: ela tinha tirado os fones — mesmo que por segundos.
E aquilo abriu uma brecha.
Na aula de português, Luan sentou-se duas carteiras atrás dela.
Isadora tentou ignorá-lo. Tentou fingir que não sentia o olhar dele às vezes se arrastar até ela. Mas sentia. E isso também a enfurecia.
Quando o sinal tocou para o intervalo, ela saiu antes de todos.
Foi direto para a biblioteca. Não para ler — ela quase não lia mais desde o velório —, mas porque sabia que poucos iam até lá.
Ao sentar-se no canto mais afastado, encostada na parede fria, finalmente deixou os ombros desabarem.
Queria odiar Luan. Ou pelo menos ignorá-lo como fazia com todos.
Mas ele não era como todos. E o pior: não parecia tentar salvá-la. Só respeitava o silêncio.
Talvez isso fosse o mais perigoso.
No fim do dia, em casa, o pai a esperava com o jantar posto.
— Fiz lasanha, seu prato preferido... lembra?
Ela assentiu, sem palavras.
Durante o jantar, Rafael a olhou com cuidado, e então perguntou:
— Você falou pouco hoje. Deu tudo certo na escola?
Isadora deu de ombros, e ficou no prato a sua frente.
— A professora de música mandou um bilhete. Disse que sua presença no trabalho em grupo foi... silenciosa, mas importante.
Ela parou de mastigar. O garfo pousado sobre a mesa fez um leve tilintar.
— Às vezes, só estar lá já é muito.
Isadora olhou para ele por um breve segundo.
Depois levantou, pegou os fones, e subiu para o quarto.
Mas, ao deitar-se, não colocou música nenhuma.
Ficou em silêncio.
O mesmo silêncio onde Luan, sem saber, agora também morava.
Luan não sabia explicar por que sentia tanta vontade de entender Isadora.
Talvez fosse o modo como ela se escondia atrás dos fones ou o jeito que seus olhos pareciam procurar algo e ao mesmo tempo evitá-lo. Ele sabia reconhecer a dor — e a dela, mesmo silenciosa, parecia gritar.
Naquela tarde, após mais uma tentativa frustrada de conversar com ela, Luan sentou-se na biblioteca da escola. Um lugar que poucos frequentavam, exceto por ele, a bibliotecária e, às vezes, Isadora — quando queria desaparecer por completo.
— Você anda quieto hoje, Luan — comentou Dona Eni, empilhando alguns livros.
— Só… pensando — respondeu ele, distraído, olhando pela janela.
Ela sorriu.
— É sobre a menina dos fones, não é?
Luan se virou, surpreso.
— Você reparou?
— Reparo em tudo o que passa por aqui. Ela vem muito. Sempre senta no canto esquerdo, perto da estante de poesia, pega um livro antigo de Drummond, mas nunca abre. Só fica lá, em silêncio. Às vezes chora baixinho. Às vezes dorme. Sempre com os fones nos ouvidos.
Aquilo tocou fundo em Luan.
Ele não sabia que ela chorava. Ninguém sabia. Ninguém via.
Na saída da biblioteca, passou pela estante de poesia e viu o livro citado. Estava lá, com uma flor seca marcada entre as páginas. Pegou-o com cuidado e folheou. Na contracapa, uma frase escrita à mão, tremida:
“O que não digo, escrevo. O que não suporto, ouço.”
Luan fechou o livro devagar, não era apenas curiosidade o que sentia. Era uma conexão silenciosa, uma vontade genuína de alcançar aquela parte dela que ainda resistia.
Nos dias seguintes, ele começou a observar mais.
Viu que Isadora evitava lugares onde antes costumava tocar — havia um piano velho na sala 9, onde alguns alunos praticavam em horários livres. Ela sempre passava longe.
Descobriu com um professor que ela já havia participado de um recital no ano anterior, tocando uma música autoral, mas apenas realizou sua inscrição e depois não subiu no momento de sua apresentação.
Juntando pedaços, Luan começava a entender: ali havia uma história engasgada. Uma ferida aberta.
E então, num fim de tarde, enquanto desenhava no caderno ao som de “Versos em Fúria”, teve uma ideia.
Escreveria uma música sobre o que via em Isadora, não para expor, mas para mostrar que alguém via o que ela tentava esconder.
Uma canção feita de silêncio, ausência e melodia.
Talvez, só talvez… ela escutasse.
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Atualizado até capítulo 26
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