Na manhã de segunda-feira, Isadora chegou mais cedo que o normal.
Sentou no fundo da sala, como sempre, encostada na parede, os fones conectados ao celular, mas sem música. Era apenas o ruído do silêncio que ela carregava consigo — o mesmo que a protegia do mundo e da própria memória.
Luan chegou alguns minutos depois, e por um instante hesitou. O lugar ao lado dela estava vazio. Todo mundo sabia que ela preferia ficar sozinha, mas ele já havia cansado de esperar por um "momento certo" que nunca viria.
Sentou-se ao lado.
Ela nem olhou.
— Bom dia — disse ele, com a voz baixa, mas firme.
Silêncio.
— Eu li Drummond no fim de semana — arriscou ele, após alguns segundos. — Nunca tinha parado pra ler de verdade. Agora entendo por que você escolhe aquele canto da biblioteca.
Isadora virou o rosto lentamente, surpresa, e fez uma expressão de dúvida.
— A Dona Eni me contou. E eu só achei curioso. Não é todo dia que uma garota com fones de ouvido lê poesia.
Ela o olhou por um segundo, desconfiada, depois voltou os olhos para frente. Não respondeu, mas também não se levantou.
Para Luan, isso já era alguma coisa.
Durante a aula, ele deslizou uma folha dobrada até a borda da mesa dela. Isadora não pegou de imediato. Esperou ele se distrair, então abriu discretamente.
Era uma letra de música.
Simples. Inacabada. Mas bonita.
“Se eu te ouvir no silêncio / Sei que ainda há som em ti / Mesmo que não toque, tua dor compõe / E eu apenas escuto…”
Isadora mordeu o lábio inferior, enrugou a folha e guardou no bolso da mochila sem dizer nada.
Na hora do intervalo, saiu antes de todos. Luan a seguiu a certa distância, mas não a alcançou.
Atrás do ginásio, enquanto comia uma maçã sozinha, ouviu passos.
— Você não vai me agradecer pela letra? — perguntou ele, com um sorriso contido.
Isa revira os olhos. Tem
- Só estou tentando não te deixar desaparecer. - Fala Luan.
Isadora respirou fundo. O vento da tarde brincava com seu cabelo, e ela apertou os fones contra os ouvidos.
Ela se levantou e caminhou para longe, sem pressa, mas também sem convite para que ele a seguisse.
Luan ficou parado por alguns segundos, vendo-a se afastar. No bolso, ainda tinha outra folha — mais um pedaço da canção que talvez nunca fosse ouvida.
Na tarde daquele mesmo dia, a professora de Literatura propôs uma atividade em duplas: análise de trechos de músicas brasileiras.
— Vocês vão escolher uma canção e escrever um pequeno texto interpretativo. Usem figuras de linguagem, falem de metáforas, emoções, o que conseguirem enxergar — explicou ela, sorrindo.
Isadora já sabia o que vinha a seguir.
O emparelhamento.
Pessoas cochichando se desviando dela.
Como sempre, ninguém a escolheu.
— Isadora… Luan — chamou a professora, casualmente.
Ela quase contestou, mas engoliu o impulso. Suspirou fundo e virou para ele, já esperando um comentário qualquer.
Mas Luan apenas sorriu, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
— Vai ser fácil — disse ele. — Você entende mais de música do que metade da sala inteira.
Ela arqueou uma sobrancelha, cética.
— Eu escrevo. Você escolhe a música.
Isadora hesitou. Depois de alguns segundos, puxou um pedaço de papel e escreveu um título:
“O Mundo é um Moinho” – Cartola.
Luan arregalou os olhos.
— Pesado. Belo, mas pesado.
Isadora pegou outro papel e escreveu:
Combina com a tarefa e com o mundo.
Durante os minutos seguintes, ele escreveu. Observava os olhos dela vez ou outra, tentando adivinhar o que pensava. Isadora olhava para a janela, absorta.
A canção falava de desilusões, de um aviso quase profético, de um amor ferido. E, de certo modo, era como se Clara estivesse ali, sussurrando entre os versos.
Quando a aula terminou, Luan entregou a folha para a professora e virou-se para Isadora:
— Amanhã tem ensaio do coral da escola. Você já ouviu?
Ela negou com a cabeça.
— Eles vão apresentar uma música nova… Você devia ir. Só pra ouvir.
Isadora negou com a cabeça.
— Mesmo com os fones o tempo todo?
Isadora não respondeu.
Apenas se levantou, pegou a mochila, e saiu.
Mas, pela primeira vez, não colocou os fones no ouvido.
Caminhou em silêncio até o portão da escola, e algo em seus passos parecia… menos pesado.
Não leve. Mas menos arrastado.
Luan, do outro lado da sala, observava em silêncio. E mesmo sem entender tudo ainda, sabia: havia mais por trás daqueles olhos fundos do que qualquer pessoa ali imaginava.
Luan já estava há quase um mês naquela escola, e quanto mais o tempo passava, mais certas coisas pareciam fora do compasso.
A Escola Municipal de Artes Aurora Nunes era conhecida por sua rigidez artística. Quem não cumpria metas, não apresentava trabalhos, não participava das atividades práticas, era automaticamente encaminhado para recuperação — ou, no último caso, desligado.
Mas Isadora não fazia nada, não dançava, não pintava, não atuava, não cantava. Só aparecia. Com os fones. E o olhar distante.
E, estranhamente… nada acontecia.
Na aula de canto coral, ela ficava sentada no fundo. Em artes cênicas, apenas observava. Em teoria musical, copiava algumas coisas, mas raramente interagia.
— É estranho, né? — Luan perguntou casualmente para Valéria, aluna do segundo ano, com quem ele conversava às vezes.
— O quê?
— A Isa. Quer dizer... ela não participa de quase nada. Achei que a escola fosse bem rígida com isso.
Valéria olhou para os lados antes de responder.
— Ninguém fala muito disso.
— Mas por quê?
— Porque é Isadora Martins Valentini Pirelli
Luan franziu a testa.
— E?
— Filha da Clara Martins Valentini. A maior pianista que essa escola já teve. Ex-aluna, ex-professora, ex-tudo. Ela morreu aqui, lembra?
Luan silenciou. Ele lembrava da história, sim — um acidente durante uma apresentação, há exatamente quatro anos. Não sabia detalhes. Só que foi "trágico".
— Isa era prodígio. Tocava desde pequena. Subiu no palco com a mãe várias vezes. Até aquele dia.
— E depois?
Valéria deu de ombros.
— Depois ninguém mais ouviu ela tocar. Nem falar. Ela parou. Sumiu por dentro. A direção deu um jeito de mantê-la aqui… ninguém comenta, mas acho que é por respeito. Ou culpa. Ou os dois.
Luan sentiu um frio na espinha. Não era só tristeza.
Era trauma.
Dor enraizada.
E talvez por isso todos pisassem em silêncio quando se tratava dela.
Mas ele não queria apenas entender. Queria encontrar uma forma de alcançá-la.
Mesmo que ela ainda não soubesse.
Naquela noite, Isadora chegou em casa e trancou-se no quarto como sempre fazia.
O quarto era o mesmo desde os oito anos: paredes azul-claro desbotado, prateleiras com livros que já não lia, e o piano silencioso coberto com um lençol. Havia algo de fantasmagórico na cena, como se tudo estivesse congelado no tempo.
Ela sentou na beira da cama, tirou os fones por um instante e os encarou como quem observa uma cicatriz. Depois os recolocou, ligando a música no volume o mais baixo possível. Apenas o suficiente para que não se ouvisse o mundo.
Mas algo insistia em aparecer em sua memória: o bilhete.
"Eu ouvi com os olhos. Você ainda está aí."
Isadora abriu o caderno e passou os dedos lentamente sobre o post-it. Como se aquelas palavras tivessem peso.
Ela não sorriu. Não chorou.
Mas retirou o post-it do caderno e guardou dentro da antiga agenda onde ficavam os rabiscos que fazia para a mãe quando era pequena.
Uma ação pequena.
Quase invisível.
Mas era a primeira vez, em muito tempo, que ela não jogava algo fora.
Na manhã seguinte, ao chegar na sala, Luan encontrou seu próprio caderno com algo diferente:
Uma figura desenhada a lápis.
Dois fones de ouvido se encontravam ao centro e, entre eles, uma flor brotava — delicada, quase apagada, como se feita por alguém que tivesse esquecido como desenhar beleza… mas ainda assim tentasse.
Não havia assinatura, mas ele sabia de quem era.
E naquele gesto mudo, um novo som começava a surgir.
Não era nota.
Não era fala.
Era presença.
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Atualizado até capítulo 26
Comments
Kevin Wowor
Continua, autora, estou curtindo muito!🤩
2025-08-01
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