Capítulo 3 – A Mulher que Ninguém Conhecia

O ônibus mal havia desaparecido na curva da estrada quando Isadora cruzou os portões da pequena rodoviária.

A cidade era pequena. Fria. O tipo de lugar onde todo mundo se conhece e, por isso mesmo, se esconde. As ruas estavam quase vazias. As fachadas das casas eram modestas, com janelas baixas e muros cobertos de trepadeiras. Ali, ninguém esperava luxo — e isso era exatamente o que ela precisava.

Caminhou sem pressa pelas calçadas de pedra. Observava tudo com atenção: a padaria no canto da praça, o café silencioso com toldos vermelhos, o letreiro da pensão antiga que oferecia quartos por diária ou semana.

Parou ali.

Uma mulher idosa a atendeu na recepção. Simples, cordial, sem perguntas demais.

— Só por uns dias — Isadora disse, sorrindo com os lábios, mas não com os olhos.

— Está fugindo de algo? — a senhora perguntou com bom humor.

— De mim mesma — respondeu. E não era mentira.

Pagou adiantado, em dinheiro. Subiu as escadas estreitas com passos firmes. O quarto era pequeno, mas limpo. Uma cama com lençóis floridos, uma escrivaninha, uma janela com vista para a praça central.

Isadora largou a bolsa sobre a cadeira e sentou-se na beirada da cama. Respirou fundo.

Ali, ninguém a chamaria pelo nome.

Ali, ninguém perguntaria sobre Henrique.

Nem sobre Clara.

Nem sobre o que ela havia deixado para trás.

Levou as mãos ao cabelo, desfez o coque, e o cheiro do antigo perfume ainda estava ali. Um lembrete.

Levantou-se de repente e entrou no pequeno banheiro. Abriu a torneira da pia, molhou o rosto e depois abriu a bolsa. Retirou tudo que tinha. Documentos, cartões, o passaporte vencido, fotos antigas.

Tudo foi jogado dentro da pia.

Pegou o isqueiro da gaveta e, um por um, queimou os papéis. O cheiro de papel queimado subiu como um ritual de libertação.

Ela não precisava mais daquilo.

O RG com seu nome de casada foi o último.

As chamas engoliram o "Isadora Vasconcellos" como se estivessem ansiosas por levá-lo embora.

Quando tudo virou cinzas, ela abriu a janela e deixou o vento levar o resto.

Passou o dia caminhando pela cidade, anotando endereços, observando as pessoas.

Ali, ela seria outra. Teria outro nome, outra rotina, outra vida.

Já sabia onde conseguir um documento falso. Já tinha em mente um sobrenome neutro. Uma versão simplificada de si mesma.

Não mais a esposa perfeita.

Não mais a amiga traída.

Apenas uma mulher viva, reinventada. Invisível.

Comprou um celular novo, de chip pré-pago, sem internet. Só usaria se realmente precisasse.

Comprou roupas básicas. Trocou o estilo. Cabelo preso, óculos escuros, tênis nos pés. Simples, comum.

Intocável.

Naquela noite, deitada na cama estranha, sob um teto silencioso, ela dormiu profundamente.

Na manhã seguinte, a cidade ainda parecia adormecida quando Isadora desceu para o café.

Sentou-se à mesa dos fundos, de onde podia observar a rua pela janela. O sol mal havia tocado o chão de pedra da calçada e uma brisa gelada entrava pelas frestas. Havia cheiro de café passado na hora e pão recém-saído do forno. Sentiu o estômago revirar, mas comeu. Precisava manter-se firme.

Ela sabia que, nos próximos dias, tudo dependeria do silêncio. Da observação. Do cuidado com cada passo.

A cidade era o cenário perfeito: pequena demais para atrair atenção, grande o suficiente para ela desaparecer no meio da rotina dos outros.

Após o café, voltou ao quarto e começou a rascunhar seu novo mundo. Anotou um nome diferente em um caderno velho que comprara no dia anterior: Helena Duarte. Soava comum. Invisível. Exatamente como precisava.

Escolheu também uma data de nascimento falsa. Apagou qualquer rastro digital anterior. Esvaziou e descartou o antigo celular — atirou-o no rio durante uma caminhada longa por um bosque da cidade, onde ninguém a viu.

Não deixaria pontas soltas.

Mais tarde, procurou emprego. Não podia arriscar cargos de destaque, mas sabia fazer muitas coisas. Foi educada para ser a mulher de um homem importante — o que incluía falar bem, agir com elegância, entender de negócios e etiqueta. Agora, tudo isso seria usado em seu favor, mas nos bastidores.

Encontrou um pequeno sebo no centro da cidade. A livraria era acanhada, mas charmosa. Havia poeira nos livros, luz fraca e cheiro de história impregnado em cada canto. Uma senhora de expressão severa, dona do lugar, a recebeu com desconfiança.

— Já trabalhou com livros? — perguntou a mulher, franzindo o cenho.

— Cresci cercada por eles — respondeu Isadora. Era verdade. Mas não disse que a maioria era decorativa, encapada para combinar com a sala de estar da mansão onde vivia.

A senhora a observou por longos segundos, então assentiu.

— Pode começar amanhã. Organize o setor de literatura estrangeira. Está uma bagunça.

Isadora agradeceu. Deixou o local com as mãos frias, mas o peito... pela primeira vez em dias, estava quente. Era pouco. Mas era dela. Genuinamente dela.

À noite, anotou tudo em seu caderno novo.

Dia 1

Nome novo: Helena.

Primeiro emprego. Nada de luxo. Mas é o começo.

Ninguém me conhece. Ninguém me deve nada. E eu também não devo mais nada a ninguém.

Na madrugada, acordou assustada com um sonho. Henrique estava lá. A amante também. Riam. A chamavam de fraca. De burra.

Ela acordou suando, o peito ofegante, mas permaneceu em silêncio.

Aquele pesadelo não era um aviso. Era uma lembrança do que deixara para trás.

Isadora se sentou na cama, abraçada aos próprios joelhos. Seus olhos vagaram pela penumbra do quarto.

Por um momento, pensou em Clara.

A melhor amiga que lhe enfiara uma faca pelas costas.

Como ela conseguira?

Como Henrique permitira?

Engoliu o nó na garganta e respondeu mentalmente:

“Porque eu me anulei por eles. Agora, não mais.”

No dia seguinte, ao sair para trabalhar, comprou tintura escura para os cabelos.

Desfez-se das últimas roupas de grife que trouxera.

Passou a usar jeans, camisetas simples, um casaco longo.

No espelho da farmácia, viu uma mulher nova — os traços eram os mesmos, mas a expressão já não era mais a da esposa dedicada, traída e humilhada.

Era a de alguém que havia enterrado a própria vida… e escolhido renascer em silêncio.

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Comments

MARIA RITA ARAUJO

MARIA RITA ARAUJO

parece boa, espero ter um andamento bom e um final melhor ainda

2025-07-22

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Capítulos
1 Capítulo 1 – O Dia Em Que Eu Parei de Existir
2 Capítulo 2 – O Começo do Fim
3 Capítulo 3 – A Mulher que Ninguém Conhecia
4 CAPÍTULO 4 – SILÊNCIO EM DEMASIA
5 Capítulo 5 – Fantasmas que eu escolhi não ver
6 Capítulo 6 – Onde ninguém me conhecia
7 Capítulo 7 – As Coisas Que Não Dizemos
8 Capítulo 8 – As Cores de Monte Azul
9 Capítulo 9 – A Ausência que se Tornou Silêncio
10 Capítulo 10 – O Velório de Uma Mulher que Ainda Respira
11 Capítulo 11 – Entre o Fim e o Recomeço
12 Capítulo 12 – Segredos Florescem em Silêncio
13 Capítulo 13 – Verdades que o Silêncio Sussurra
14 Capítulo 14 – Rastros Invisíveis
15 Capítulo 15 – A Mulher que Morreu
16 Capítulo 16 – A Arte de Permanecer Invisível
17 Capítulo 17 – O Peso do Início
18 Capítulo 18 – A Verdade que Sangra
19 Capítulo 19 – Feridas Abertas Não Sabem Silenciar
20 Capítulo 20 – Fugir Também É Resistir
21 Capítulo 21 – Quando o Silêncio Grita
22 Capítulo 22 – Quando as Escolhas Começam a Cobrar
23 Capítulo 23 – A Verdade Tem Voz
24 Capítulo 24 – Quando o Passado Toca a Porta
25 Capítulo 25 – Entre Linhas que Não Devem Ser Cruzadas
26 Capítulo 26 – Quando o Passado Insiste em Ficar
27 Capítulo 27 – Onde o Medo Tem Nome
28 Capítulo 28 – As Cinzas de um Nome
29 Capítulo 29 – O Peso de Se Chamar Isadora
30 Capítulo 30 – Quando a Verdade Respira
31 Capítulo 31 – O Fim das Correntes
32 Epílogo – Onde Florescem os Recomeços
Capítulos

Atualizado até capítulo 32

1
Capítulo 1 – O Dia Em Que Eu Parei de Existir
2
Capítulo 2 – O Começo do Fim
3
Capítulo 3 – A Mulher que Ninguém Conhecia
4
CAPÍTULO 4 – SILÊNCIO EM DEMASIA
5
Capítulo 5 – Fantasmas que eu escolhi não ver
6
Capítulo 6 – Onde ninguém me conhecia
7
Capítulo 7 – As Coisas Que Não Dizemos
8
Capítulo 8 – As Cores de Monte Azul
9
Capítulo 9 – A Ausência que se Tornou Silêncio
10
Capítulo 10 – O Velório de Uma Mulher que Ainda Respira
11
Capítulo 11 – Entre o Fim e o Recomeço
12
Capítulo 12 – Segredos Florescem em Silêncio
13
Capítulo 13 – Verdades que o Silêncio Sussurra
14
Capítulo 14 – Rastros Invisíveis
15
Capítulo 15 – A Mulher que Morreu
16
Capítulo 16 – A Arte de Permanecer Invisível
17
Capítulo 17 – O Peso do Início
18
Capítulo 18 – A Verdade que Sangra
19
Capítulo 19 – Feridas Abertas Não Sabem Silenciar
20
Capítulo 20 – Fugir Também É Resistir
21
Capítulo 21 – Quando o Silêncio Grita
22
Capítulo 22 – Quando as Escolhas Começam a Cobrar
23
Capítulo 23 – A Verdade Tem Voz
24
Capítulo 24 – Quando o Passado Toca a Porta
25
Capítulo 25 – Entre Linhas que Não Devem Ser Cruzadas
26
Capítulo 26 – Quando o Passado Insiste em Ficar
27
Capítulo 27 – Onde o Medo Tem Nome
28
Capítulo 28 – As Cinzas de um Nome
29
Capítulo 29 – O Peso de Se Chamar Isadora
30
Capítulo 30 – Quando a Verdade Respira
31
Capítulo 31 – O Fim das Correntes
32
Epílogo – Onde Florescem os Recomeços

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