A rodoviária estava quase vazia. Assim como Isadora se sentia naquele momento.
Isadora sentou-se no banco de metal, encolhida no casaco leve que trouxera às pressas. O ar da madrugada cortava como navalha, mas ela mal sentia o frio. O estômago estava embrulhado, mas não era fome.
Ela olhava o letreiro luminoso que anunciava os próximos destinos como quem observa uma vitrine de vidas possíveis. Era madrugada de sábado. O mundo dormia. E ela, pela primeira vez em muito tempo, estava acordada de verdade. Havia despertado do sonho que ate pouco tempo atrás achava que vivia.
Pela primeira vez… livre.
Não havia plano. Nenhum roteiro. Nenhuma mala feita com cuidado. Mas havia uma certeza imutável: ela não voltaria.
Tirou o celular do bolso. Ainda estava intacto. Nenhuma notificação, mas ela sabia que era só uma questão de tempo até que os chamados começassem a chegar. Por isso, sem hesitar, desligou o aparelho, retirou o chip com dedos trêmulos e o partiu em dois com uma mordida seca, como se selasse o fim de uma era. Jogou os pedaços na lixeira mais próxima, sem olhar para trás.
A partir daquele momento, Isadora estava oficialmente incomunicável.
Nem Henrique.
Nem Clara.
Nem seus pais, seus amigos, seus conhecidos.
Ninguém.
Todas as mensagens ficaram para trás, repousando em um dispositivo que já não teria mais utilidade. Fotos, conversas, áudios, lembranças digitais de uma vida que se encerrava ali mesmo, entre a plataforma fria e o estalido dos alto-falantes anunciando partidas.
Foi até o guichê com passos decididos e comprou a passagem em dinheiro. Nenhum cartão, nenhum registro. Um destino aleatório, escolhido com os olhos fechados. Uma cidade esquecida no mapa, onde ela jamais pensou em pisar. Era isso que queria agora: ser ninguém, em lugar nenhum.
O ônibus partiu às 3h14 da manhã. O horário exato não importava, mas ela o gravaria para sempre. Era o momento em que deixava de ser quem o mundo conhecia. Sentou-se ao lado da janela, o corpo encolhido, os braços envolvendo o próprio tronco como se pudesse impedir a alma de se despedaçar.
Não chorou.
Já tinha derramado lágrimas demais.
Do lado de fora, a cidade escorria pela janela em tons borrados de luzes e chuva. O asfalto molhado refletia as lembranças que ela se recusava a carregar. Ruas que contavam sua história, agora viravam estranhas, apagadas pela água e pela escuridão.
No bolso interno do casaco, apenas os documentos essenciais. Nome completo. CPF. RG. Tudo ainda estava intacto, tudo ainda dizia “Isadora Vasconcellos”. Mas ela sabia que, em breve, isso também teria que desaparecer. Se quisesse sumir de verdade, teria que morrer. Não de corpo, mas de existência.
Desaparecer sendo mulher, rica, casada, conhecida… não era simples. Não se tratava apenas de sumir, mas de arquitetar o sumiço com precisão. Um erro, uma ponta solta, e todo o esforço se desmancharia como areia entre os dedos.
Sumir com inteligência exigia estratégia.
E ela aprenderia.
Mesmo que precisasse pagar o preço mais alto.
Adormeceu por intervalos curtos, entre solavancos da estrada e pensamentos que vinham como punhais. Acordava com o rosto colado ao vidro gelado, tentando lembrar de quem era antes de tudo desmoronar. Antes de Henrique transformar amor em prisão. Antes de Clara roubar dela o que havia de mais precioso. Antes de o mundo virar de cabeça para baixo.
Horas depois, o ônibus parou.
O céu ainda estava cinzento, o sol nascendo tímido por trás de nuvens pesadas. O cheiro de terra molhada invadia tudo, misturando-se com o bafo quente do motor. Ela desceu do ônibus com os mesmos poucos pertences que carregava desde o início. Uma bolsa pequena, um casaco leve, e uma decisão definitiva.
Agora ela precisava de um novo nome. Uma nova história. Uma nova pele. Um lugar onde pudesse recomeçar… sem rastros. Sem desconfianças. Onde pudesse existir de novo sem a sombra de quem foi.
Ali, naquela cidade esquecida pelo tempo, cercada por montanhas e silêncios, ela escolheu renascer.
Mas a mulher que caminhava pela calçada úmida, com passos calmos e um olhar que escondia cicatrizes profundas, já não era mais Isadora Vasconcellos.
Era outra.
E o mundo jamais descobriria quem.
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Atualizado até capítulo 32
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