O céu estava coberto por nuvens pesadas quando a carruagem elegante cortou o caminho de terra batida que levava à sede da Fazenda Santa Amália. Anos haviam passado desde que os filhos do coronel foram enviados à capital para estudar e “se tornarem gente de verdade”, como o pai gostava de dizer. Agora estavam de volta — moldados pelo tempo, pelos livros e, principalmente, pelos valores da elite branca que comandava o país.
Pedro Afonso foi o primeiro a descer. Tinha vinte e três anos, a barba bem-feita, os ombros largos e os olhos duros como pedra. O menino curioso e gentil havia sido enterrado sob camadas de disciplina, frieza e ambição. Ao seu lado, desceu Mariana, a irmã mais nova, envolta em renda branca e arrogância. Eduardo, o irmão do meio, vinha logo atrás, ainda com traços suaves no rosto, mas com o mesmo brilho altivo nos olhos.
Rosa estava próxima à varanda da cozinha, com um cesto de roupas nos braços e a testa suada. Ao ouvir o ranger das rodas da carruagem, ergueu os olhos — e o tempo pareceu parar.
Os olhos de Pedro encontraram os dela.
Ela era a mesma e, ao mesmo tempo, outra. Tinha crescido. O corpo de mulher contrastava com a postura humilde. Os cabelos negros, herança inegável do pai, caíam soltos pelas costas. Os traços delicados traziam uma beleza que feria o orgulho das filhas brancas da casa-grande. Ela era o espelho de tudo o que era negado às mulheres como ela: liberdade, nome, história.
Pedro sentiu um desconforto súbito. O peito apertou.
Mas a lembrança da infância — das tardes sob a mangueira, dos risos partilhados, das mãos pequenas entrelaçadas — foi esmagada pela educação que recebera. Anos ouvindo que escravos não tinham alma. Que eram inferiores. Que qualquer laço com eles era vergonhoso. Ele lutou contra o impulso de sorrir para Rosa e, em vez disso, virou o rosto.
Mariana, ao vê-la, soltou uma risadinha seca.
— A bastarda ainda vive aqui? — sussurrou para Eduardo, que não respondeu.
O coronel apareceu na porta da casa com um largo sorriso. Abraçou os filhos com orgulho, apresentou os novos escravos adquiridos durante sua ausência e mandou preparar um jantar especial. Era noite de celebração.
Rosa e Inácia trabalharam em silêncio, servindo à mesa, colocando toalhas de linho, enchendo taças de cristal. A cada passo, Rosa sentia os olhos de Mariana sobre ela como navalhas. Pedro evitava encará-la diretamente, mas não conseguia ignorar sua presença.
No fim da noite, Rosa recolhia os pratos quando se aproximou da cadeira onde Pedro estava. Por um segundo, ele ergueu os olhos. Ela também. E ali estavam, frente a frente, como dois estranhos cheios de lembranças.
— Boa noite, sinhô Pedro Afonso — disse ela com voz contida, respeitosa, mas firme.
Ele demorou um segundo para responder.
— Boa noite… Rosa.
Foi a primeira vez que disse seu nome desde que voltara. Soou estranho. Quase proibido. Quase íntimo.
E quando ela se afastou, com a mesma leveza de quem carrega correntes invisíveis, Pedro Afonso sentiu um vazio que o vinho e a música da noite não conseguiram preencher.
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Atualizado até capítulo 75
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