A infância de Rosa foi um terreno delicado, dividido entre a sombra da senzala e a luz sempre distante da casa-grande. Cresceu no limbo entre dois mundos — perto demais dos senhores para ser aceita entre os escravizados, e longe demais dos brancos para ser considerada parte da família. Sua pele clara, os olhos atentos e os cabelos lisos e negros eram uma lembrança viva do pecado que a gerara. E isso era suficiente para despertar a inveja e a crueldade nas outras crianças da fazenda.
Desde pequena, Rosa ouvia cochichos por onde passava. Algumas meninas diziam que ela se achava melhor que os outros por não ter a pele escura. Outras a chamavam de “filha da vergonha”, “senhazinha bastarda” ou simplesmente “branca suja”. Não importava o quanto Inácia ensinasse humildade e respeito — a crueldade das palavras infantis deixava marcas fundas em sua alma.
Mas nem todos a desprezavam.
Pedro Afonso, o filho mais velho do coronel Domingos Ferraz de Almeida, era curioso e observador. Desde pequeno, se interessava por tudo que estivesse fora da casa-grande: as plantas do mato, os animais do curral, e especialmente... Rosa. Ele a via sentada sob a mangueira, desenhando no chão com um graveto ou carregando baldes de água maiores que ela. Havia nela um brilho que lhe escapava à compreensão, mas que lhe prendia os olhos.
Quando se encontravam no quintal ou no pomar, trocavam palavras curtas, às vezes sorrisos, às vezes pedras e folhas colhidas como presentes. Eram crianças, livres do peso completo da realidade, mesmo que por pouco tempo.
Rosa também conheceu Mariana, irmã de Pedro, uma menina bonita e altiva, dois anos mais velha. No início, Mariana tolerava a presença de Rosa, desde que ela soubesse seu lugar. Mas bastou que alguém — uma criada, um capataz, ou até o próprio pai — elogiasse a beleza de Rosa para que o veneno da inveja se alojasse no coração da menina da casa-grande.
— Ela nem parece escrava, parece mais branca que eu... — Mariana ouviu certa vez. E nunca mais esqueceu.
O caçula da família, Eduardo, era risonho e leve como uma pena. Corria atrás de Rosa o dia inteiro, agarrando-se às suas saias, pedindo histórias, músicas e frutas escondidas. Rosa o tratava como um irmãozinho. Inácia dizia que ela tinha mãos de acalanto e coração de mãe, mesmo sendo tão nova.
Durante alguns anos, os quatro viveram uma infância cruzada — cheia de jogos improvisados, piqueniques proibidos perto do riacho e cochichos escondidos sob as figueiras. Eram dias doces, onde o mundo parecia esquecer, por um instante, que Rosa era cativa.
Mas a doçura teve fim.
Quando Pedro completou dez anos, o coronel decidiu que era hora de educá-lo como um verdadeiro herdeiro. Mandou o filho para o Rio de Janeiro, junto com Mariana e Eduardo. Partiriam para estudar nas melhores escolas, aprender etiqueta, francês, música, política... e, sobretudo, aprender a esquecer.
Na manhã da partida, Rosa assistiu à movimentação escondida atrás da cozinha. Pedro procurou por ela, mas não a encontrou. Estava triste, calado. Quando já estavam montados na charrete, Rosa saiu de onde estava. Tímida, com os olhos baixos.
Pedro a viu e sorriu.
— Eu volto logo — disse, com a voz embargada.
Mas o “logo” virou anos. E quando retornassem, nenhum deles seria mais o mesmo.
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Atualizado até capítulo 75
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