DOR E DESEJO
Inácia era uma mulher de beleza serena, daquelas que pareciam carregar o mundo nos olhos. Sua pele morena reluzia sob o sol quente do interior, e seus traços, herdados de ancestrais que jamais conheceria, faziam com que sua presença causasse desconforto nos corredores da casa-grande. Era escrava desde o nascimento, filha de mãe africana e pai desconhecido, criada entre sussurros e mandingas, entre o pilão da cozinha e a dor silenciosa dos castigos.
Foi ainda jovem que o patrão voltou os olhos para ela. Era um homem poderoso, dono de terras que se perdiam no horizonte e de almas que se curvavam ao seu mando. Dizia-se temente a Deus, mas suas ações escondiam uma alma marcada pela hipocrisia. Ele escolheu Inácia como escolhia o gado para o corte: com desejo e brutalidade. Ela não teve escolha. Era mulher, era escrava, era objeto.
Daqueles encontros forçados nasceu Rosa.
Quando a esposa do senhor descobriu a gravidez, a casa-grande tremeu. Era inadmissível. Uma escrava grávida do próprio senhor? A sinhá enlouqueceu. Queria ver Inácia no tronco. Queria fogo, açoite, sangue. Mas o patrão hesitou. Porque, no fundo, mesmo sem jamais admitir, ele amava Inácia. Amava do jeito que homens fracos amam: calados, covardes, entre o prazer e a culpa.
Para evitar escândalos, ele tomou uma decisão rápida. Mandou Inácia embora. Enviou-a para o interior do Vale do Paraíba, para uma das maiores fazendas de café da região: a Fazenda Santa Amália, pertencente ao coronel Domingos Ferraz de Almeida, seu compadre e amigo de confiança. Inácia foi enviada grávida, sem explicações, sem direito de escolha, mas com uma única recomendação deixada em carta:
"Cuide bem dela. E da criança. Não toque um dedo em Inácia. Ela carrega o meu sangue."
A viagem foi longa, silenciosa, envolta em poeira e lágrimas contidas. Inácia chegou à nova fazenda com o ventre pesado e o coração em pedaços. Os dias seguintes foram marcados por um silêncio cortante. Ela não era açoitada. Não era insultada. Mas continuava sendo propriedade. Um número no inventário. Uma sombra sem nome.
Rosa nasceu numa noite quente de novembro, entre lençóis ásperos e mãos cuidadosas de uma escrava mais velha, chamada Benedita. Veio ao mundo em silêncio, olhos bem abertos, pele clara, cabelos finos e lisos. Tão diferente das outras crianças da senzala que as parteiras se entreolharam com receio. Rosa era a cópia perfeita do patrão que a havia gerado. Um espelho do homem que nunca a chamaria de filha.
Mesmo assim, nasceu escrava.
Mesmo sem nunca conhecer o tronco, Rosa cresceu em silêncio. As outras crianças zombavam de sua pele clara, diziam que ela era “mistura suja”, que não era nem de lá, nem de cá. A casa-grande não a aceitava. A senzala a olhava com desconfiança. E ela cresceu nesse espaço invisível entre dois mundos, pertencendo a nenhum.
Inácia, por sua vez, amava a filha com todas as forças que restavam em seu corpo cansado. E jurou, ainda com Rosa nos braços, que faria de tudo para que a filha jamais fosse como ela. Mesmo escrava, mesmo calada, Rosa teria voz. Teria história. E talvez, um dia, quem sabe… até amor.
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Atualizado até capítulo 75
Comments
Maria Joana Cunha Costa
céus que triste muito triste 😞😞
2025-07-22
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Benedita Lourdes
comecei ler agora 28/07/25, estou gostando muito
2025-07-29
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