Na manhã seguinte, a luz que atravessava as janelas altas do casarão antigo deixava tudo com um tom dourado e quase irreal. Mas, apesar da beleza da cena, o silêncio que pairava entre Isadora e Gael era tudo, menos leve.
Ela se levantou devagar do sofá onde havia adormecido por poucas horas — ainda vestida com o mesmo vestido da noite anterior — e notou que Gael já estava acordado, de pé, ao lado da lareira apagada, com uma xícara de café entre os dedos.
— Dormiu bem? — ele perguntou sem tirar os olhos do fogo inexistente, como se buscasse respostas em meio às cinzas.
— O suficiente para lembrar que não gosto de jogos sem regras — respondeu ela, ajeitando os cabelos com os dedos antes de se aproximar.
Gael sorriu de lado, sem humor.
— E o que faz você pensar que estamos jogando?
— Tudo. — Isadora pegou a xícara das mãos dele e tomou um gole. — Você, a forma como me observa, como me testa… como me toca e depois finge que nada aconteceu.
— E você? — Gael a encarou. — Também joga, Isadora. Com palavras, com silêncios, com aquele seu jeito de me provocar sem entregar nada de fato. Está tentando me manipular?
Ela sorriu de canto. Havia uma centelha de orgulho em ser reconhecida por ele como alguém perigosa. Mas também havia uma ameaça implícita na pergunta.
— Você acredita mesmo que sou apenas mais uma mulher tentando controlar o grande Gael Castellani?
— Acredito que ninguém entra na minha vida por acaso. — Ele se aproximou mais um passo. — E você, Isadora, tem segredos nos olhos. Eu conheço esse olhar.
Por um momento, ela pensou em dizer a verdade — ou parte dela. Mas não ainda. O tempo ainda não havia amadurecido as peças do jogo. Era cedo demais.
— Talvez você esteja apenas projetando seus próprios fantasmas em mim — respondeu, fria.
Gael não disse nada. Apenas saiu da sala, deixando-a com a xícara e o gosto amargo de uma verdade que não podia ser dita.
Nos dias que se seguiram, Isadora voltou à rotina da mansão Castellani como se nada tivesse acontecido. Mas tudo estava diferente.
Gael não recuava, mas também não avançava. Era como se estivesse calculando seus próximos passos com a mesma frieza que ela própria usava. Ele a observava mais do que antes — silenciosamente, à distância, com a atenção de quem lê um livro perigoso.
E não era só ele.
Outras pessoas começavam a notar a presença de Isadora como algo além da jovem associada aos eventos sociais da elite. Ela estava envolvida em decisões, era consultada por Gael em reuniões discretas, aparecia ao lado dele em eventos que antes ele fazia questão de frequentar sozinho.
Isso incomodava. E atraiu inimigos.
— Precisa tomar cuidado, Isadora — alertou Helena, uma das poucas funcionárias que ainda mostrava alguma simpatia. — Aqui, nem tudo é o que parece. E gente como você… assusta quem está acostumado a controlar tudo.
Isadora agradeceu com um leve sorriso. Ela não precisava de avisos. Sabia que estava mexendo com estruturas antigas — e quanto mais se aproximava do centro do poder de Gael, mais visível se tornava para os olhos errados.
Numa noite em que Gael estava ausente por causa de uma reunião de negócios, Isadora aproveitou para explorar os limites da casa. Havia algo no antigo escritório do pai dele — um cômodo trancado, esquecido nos fundos do segundo andar — que a atraía.
Demorou, mas conseguiu a chave com Helena, sob a desculpa de buscar arquivos de contabilidade.
Ao abrir a porta, o cheiro de madeira velha e papéis antigos tomou conta do ambiente. O escritório era diferente do resto da casa — mais pesado, denso, como se o passado ainda pairasse ali, intacto.
Ela começou a vasculhar gavetas e livros. Não sabia exatamente o que procurava, mas queria entender de onde vinha Gael. O que havia moldado aquele homem tão cheio de defesas e sombras.
Encontrou registros de investimentos, anotações antigas, fotos de infância… e então, no fundo de uma caixa, uma carta.
O papel estava envelhecido, mas a caligrafia era firme. Era uma carta escrita pelo pai de Gael para um nome que ela desconhecia — mas o conteúdo era perturbador. Havia menções a dívidas, a chantagens, e a algo que soava como uma traição familiar.
Isadora guardou a carta no bolso do casaco antes de fechar tudo de volta. Ela não sabia exatamente como aquilo se encaixava em seu plano… mas algo dizia que aquele pedaço do passado poderia mudar tudo.
Quando voltou ao quarto, horas depois, Gael já havia retornado. Ele estava sentado à beira da cama, sem gravata, camisa aberta até o peito e um copo de uísque na mão. O olhar cansado encontrou o dela com um misto de curiosidade e exaustão.
— Saiu sem avisar? — ele perguntou, sem acusação na voz, mas com atenção nas entrelinhas.
— Só precisava de ar. A casa é sufocante às vezes.
Gael assentiu lentamente. Depois estendeu o copo para ela.
— Quer?
Isadora pegou o copo, mas não bebeu.
— Você confia em mim, Gael?
A pergunta foi um soco no silêncio.
Ele não respondeu de imediato. Levantou-se e se aproximou, tirando o copo das mãos dela.
— Não. — A resposta veio seca. — Mas isso não impede que eu deseje você.
E antes que ela pudesse reagir, ele a puxou pela cintura, o beijo que se seguiu foi menos selvagem do que o anterior, mas muito mais perigoso. Porque dessa vez não era só desejo. Era desconfiança, raiva, frustração… e algo que ambos estavam começando a sentir, mas ainda não sabiam nomear.
Isadora respondeu com a mesma intensidade
O beijo foi interrompido pelo toque insistente do telefone no quarto de Gael. Ele afastou os lábios dos dela com relutância, o olhar ainda cravado em seus olhos azuis, como se desejasse ignorar o mundo além daquela conexão.
— Me dá um minuto — murmurou, pegando o celular do criado-mudo.
Isadora se afastou lentamente, tentando recuperar o fôlego. O gosto de uísque e desejo ainda em sua boca, o coração batendo rápido demais. E, no entanto, sua mente permanecia alerta. Ela precisava manter os pés no chão. Precisava lembrar que tudo aquilo fazia parte de algo maior.
Enquanto Gael falava ao telefone, com a voz baixa e tensa, Isadora caminhou até a janela. Lá fora, os jardins estavam envoltos pela penumbra da noite, as luzes da mansão lançando sombras sobre as árvores perfeitamente aparadas. Tudo parecia calmo demais… silencioso demais.
— Preciso sair — disse Gael, encerrando a ligação com um suspiro contido. — Um problema com um dos fornecedores da vinícola. Nada grave, mas preciso resolver pessoalmente.
Ela se virou para encará-lo, com um sorriso contido.
— Sempre negócios, não é?
— Nem sempre. Mas agora... sim. — Ele a observou por um segundo a mais do que deveria, como se lutasse com uma dúvida interna. — Fique aqui esta noite. Evite andar pela casa sozinha.
Isadora ergueu uma sobrancelha.
— Está com medo de que eu descubra algo... ou de que alguém me descubra?
Gael sorriu, mas o olhar estava mais escuro que o habitual.
— As duas coisas. — E então saiu, sem dizer mais nada.
A madrugada passou devagar.
Isadora não conseguiu dormir. Revirava-se na cama, a mente fervilhando. Havia algo no escritório, naquela carta que lera às pressas, que continuava a ecoar em sua cabeça. O nome escrito no papel — Victor Morelli — não lhe era familiar, mas o conteúdo da carta deixava claro que aquele homem havia sido uma ameaça para os Castellani no passado.
E parte do texto sugeria que o problema nunca havia sido completamente resolvido.
Ela levantou, caminhou descalça até o escritório improvisado que vinha usando. Tirou a carta do envelope e releu cada linha à luz fraca do abajur. Frases como “ele sabe demais”, “não é seguro mantê-lo vivo”, e “Gael nunca pode descobrir a verdade sobre sua mãe” causavam arrepios.
Gael achava que controlava tudo ao redor. Mas a verdade é que ele também estava cercado por mentiras.
No dia seguinte, enquanto tomava café na varanda, Isadora foi surpreendida por uma visita inesperada. Um homem alto, moreno, vestido de preto da cabeça aos pés, atravessou os jardins escoltado por dois seguranças.
— Ele insiste em falar com você, senhorita — disse um dos seguranças, constrangido. — Disse que é um amigo da família Castellani.
O homem a cumprimentou com um sorriso educado, mas o brilho em seus olhos era tudo, menos amistoso.
— Isadora, não é? Prazer. Meu nome é Alessandro Morelli.
Morelli.
O sobrenome ressoou como um trovão em sua mente. O mesmo nome da carta.
Ela manteve a expressão firme, embora os alarmes soassem dentro de si.
— O que posso fazer por você, senhor Morelli?
Ele se aproximou, apoiando uma das mãos na mesa de ferro forjado.
— Vim apenas... observar. Dizem que Gael Castellani está encantado por uma nova mulher. E onde Gael foca a atenção, o mundo ao redor começa a desmoronar.
— Isso parece mais uma ameaça velada do que uma visita social.
— Apenas uma constatação. — Ele deu um meio sorriso. — Homens como ele constroem impérios sobre cinzas. E você, Isadora... parece inteligente demais para ser apenas mais uma peça nesse tabuleiro.
Ela se levantou devagar.
— E você parece saber demais para alguém que não foi convidado.
Alessandro inclinou a cabeça, como se gostasse do desafio.
— Cuidado com o que encontra no fundo dessa mansão. Às vezes, as verdades que buscamos... nos destroem.
E então ele foi embora, deixando um rastro de inquietação que se infiltrou nos ossos de Isadora como um veneno lento.
Mais tarde, naquela mesma noite, quando Gael finalmente voltou, ela o esperava no mesmo lugar onde se conheceram: o salão de vidro da mansão, iluminado por luzes suaves e cercado pela escuridão da noite.
— Quem é Alessandro Morelli? — ela perguntou direto, sem rodeios.
Gael parou no meio do salão. A mudança em sua expressão foi quase imperceptível, mas real.
— Onde ouviu esse nome?
— Ele esteve aqui hoje.
Gael apertou os punhos. Um músculo pulsou em sua mandíbula.
— Esse homem é perigoso. Você não deve ter contato com ele.
— E por que não? Porque ele sabe demais?
Ele se aproximou, tenso.
— Porque ele é um inimigo da minha família. Porque está tentando usar você para me atingir. Porque... — a voz dele falhou por um segundo. — Porque você está no meio de algo que vai muito além de qualquer romance ou atração.
Ela ergueu o queixo, desafiadora.
— E se eu já soubesse disso, Gael? E se eu estivesse aqui não por você, mas apesar de você?
O silêncio entre eles foi cortante. Mas dentro daquele abismo, algo mais nascia. Algo que envolvia verdade, poder... e um tipo perigoso de entrega.
— Então você é mais parecida comigo do que pensei — murmurou ele. — E isso me assusta mais do que qualquer inimigo.
E naquela noite, quando ele a levou para a cama, não havia ternura — apenas necessidade. Duas almas marcadas por histórias que ainda não haviam sido contadas, colidindo no escuro como fogo e gasolina.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 51
Comments