Me vi em todo aquele caos.
As vozes ao redor, que no início soavam como ruídos abafados, começaram a adquirir nitidez. Cortantes, afiadas, diretas como facas sem cabo, invadindo minha mente com estocadas certeiras. Frases ditas com um verniz de preocupação, mas que carregavam julgamento, medo, ambição.
— Ela precisa de alguém estável…
— Alguém com juízo.
— Um ambiente adequado.
— Alguém com estrutura emocional…
Falavam sobre mim como se eu fosse uma decisão pendente, uma planta que precisava ser replantada com urgência antes de secar. Como se meu corpo fosse território em disputa. Como se minha vontade… fosse um detalhe insignificante.
Mesmo com os olhos suplicantes dela — aquele olhar que tentava evocar carinho, fragilidade, proximidade — eu não senti nada. Nenhuma ternura. Nenhum impulso de ceder. Nenhuma dúvida.
Minha avó, aquela mulher que muitos ali reverenciavam como símbolo de tradição, de postura, de elegância. Uma senhora de gestos lentos, de voz calculadamente suave. Mas eu a conhecia. Conhecia o que havia sob as camadas de perfume caro e as palavras escolhidas a dedo.
Ela era uma especialista em crises — em causá-las, em alimentá-las, em viver delas. Quantas vezes eu a vi ligar aos gritos, chorando no telefone, pressionando meus pais com suas queixas, suas mágoas antigas, suas exigências cobertas por chantagem emocional? Quantas vezes ouvi meu pai largar o jantar para atender um chamado urgente dela, que no fim não passava de mais uma encenação?
E quando não chorava, pedia. Dinheiro, favores, atenção. Tudo isso enquanto mantinha o sorriso discreto de quem finge não querer nada.
Mas todos sabiam. Sabiam dos vícios. Da bebida escondida entre os livros da estante. Do frasco de comprimidos “para dormir” que se multiplicavam sem receita. Da maneira como ela tropeçava nas palavras certas quando passava do limite — e de como todos fingiam que era só cansaço.
Agora, com a morte deles, é claro que tudo aquilo que ela recebia — a ajuda, os agrados, os luxos disfarçados de cuidados — iria acabar. Ela sabia. E cada um ali também sabia. A diferença é que ninguém tinha coragem de dizer.
Mas eu tinha. Eu saberia o que fazer. Porque comigo seria diferente.
Porque eu não vou permitir tal absurdo.
É meu. Tudo isso.
Cada móvel, cada folha daquele testamento. Cada centavo acumulado ao longo dos anos. O esforço silencioso dos meus pais, suas madrugadas em claro, seus planos riscados e reescritos mil vezes. A vida deles foi dedicada à construção de algo sólido, não para servir de pensão eterna a quem os manipulava.
Eu vi. Eu estava lá.
E agora eu estou aqui.
E não vou deixar que ninguém — absolutamente ninguém desta família — toque no que não lhe foi dado.
Nenhum centavo. Nenhuma desculpa disfarçada de afeto. Nenhuma mão estendida com falsidade.
Nenhum “é só por um tempo”.
Nada.
Senti meu corpo se enrijecer.
As mãos, antes pousadas de forma dócil sobre meu colo, agora estavam cerradas, discretamente, mas firmes. Como quem se segura para não reagir. Ou para não gritar.
Minha expressão escureceu.
O olhar que antes era vago, perdido no vazio como o de alguém que ainda está digerindo a dor, tornou-se duro. Gélido. Um vidro que ninguém mais atravessaria.
Levantei o queixo devagar, como quem escolhe o momento exato de assumir o próprio peso. Olhei em volta. Um por um. Cada rosto esperando uma palavra minha. Alguns esperando submissão. Outros esperando confusão. Todos erraram.
Por fim, encarei ela. A senhora que ainda tentava, com seus olhos trêmulos, me capturar em culpa.
E disse, com a voz baixa, serena, mas cortante como gelo:
— Desculpe… mas não posso tomar essa decisão agora.
Um silêncio tomou a sala. Diferente dos anteriores. Não era silêncio de luto. Era um vácuo. Uma ausência de controle. Um vazio onde ninguém sabia mais o que dizer.
A tensão foi quebrada apenas pela minha própria respiração.
— Meu tutor legal… aquele que quero como meu tutor… não está presente.
Houve um barulho — um leve deslocar de cadeiras, um murmúrio abafado, um suspiro nervoso. Alguém riu de nervoso, como se eu estivesse brincando. Mas eu não brinco.
Pausa. Olhei para eles como se estivesse dizendo *vocês ouviram direito*.
— Devemos adiar.
Foi isso. Nada mais.
Não ofereci justificativas. Não pedi permissão. Não implorei por compreensão. Apenas me levantei. O gesto foi firme, sem estardalhaço, sem pressa. Era necessário marcar aquele instante. Eles precisavam entender — não só ouvir — que algo havia mudado.
Que eu havia mudado.
Eu não era mais a órfã silenciosa, a filha vazia de uma tragédia. Não era a neta que os outros poderiam moldar à sua conveniência. A herdeira envergonhada.
Agora, era eu quem decidia o próximo passo.
E fosse quem fosse contra, que encontrasse forças para me impedir.
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Atualizado até capítulo 28
Comments
Brayan Uriel Vasquez Perdomo
Você é uma autora incrível, capaz de me transportar para outro mundo.
2025-07-15
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