Mesmo em meio a todo o caos, à dor da perda e ao luto que me consumia, a única preocupação dos meus familiares parecia ser: com quem ficaria a minha guarda. Era como se, de repente, eu tivesse deixado de ser uma pessoa em sofrimento para me tornar apenas um objeto de disputa. Ironicamente, a única parte da tragédia que interessava a todos era justamente essa.
Foi então que o testamento veio à tona. E, para a surpresa de muitos, ele deixava claro: ninguém, além de mim, estava diretamente contemplado. Nem mesmo meus avós. Havia apenas uma cláusula: a única pessoa que cuidasse de mim até eu completar 19 anos teria direito a uma pequena parte da herança. Essa era a idade registrada como marco no documento.
A partir daí, o que já era desconfortável se tornou vergonhoso. Uma verdadeira disputa começou dentro da família. Parentes que antes mal se falavam agora brigavam entre si, movidos não por amor ou preocupação comigo, mas por puro interesse. Era como se, de uma hora pra outra, eu tivesse virado uma moeda de troca, uma oportunidade financeira.
No momento em que eu mais precisava de acolhimento, proteção e empatia, encontrei apenas ambição e egoísmo. A dor da perda foi se somando à sensação de abandono — não porque eu estivesse sozinha, mas porque me sentia invisível no meio de tudo isso.
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Agora me vejo sentada ao redor de todos da família. Não sei dizer ao certo quantos estavam ali — talvez vinte, talvez mais. Espalhados pelo enorme sofá da sala, ocupando cada cadeira possível, alguns em pé, outros encostados nas paredes como se esperassem algo cair do teto. A casa parecia menor, abafada, como se o ar estivesse pesado demais para circular.
O testamento já havia sido lido.
Eu era a única herdeira. O silêncio depois da leitura foi grosso como poeira. Não havia nenhuma instrução sobre minha guarda. Nenhuma palavra sobre com quem eu deveria ficar. Apenas o peso da decisão, pendurado no ar como um lustre prestes a despencar.
Agora, eles cochichavam. Murmuravam meu nome como se fosse uma questão a ser resolvida. Como se eu fosse um problema, ou pior — uma solução para os problemas deles.
Então ela se levantou. Minha avó. O som da cadeira de madeira arrastando no chão fez os corpos se virarem. E antes que qualquer outra voz ocupasse o espaço, ela falou.
— Eu sou avó dela. Ela deve ficar comigo.
Foi direto. Sem floreio, sem enfeite. Uma afirmação que cortou a sala como faca afiada.
Houve um instante de silêncio. Daqueles que não são pacíficos — são carregados, tensos, como uma pausa entre trovões. E então, alguém se remexeu na cadeira.
— Isso não está no testamento — disse uma voz masculina, com um leve tom de indignação.
— Não há decisão legal. Nenhuma indicação — reforçou outra, mais fria.
E ali começou o desfile de argumentos.
— Ela precisa de um lar estável.
— Tem que continuar os estudos.
— Precisa de alguém mais jovem.
— Um casal, de preferência.
— Gente com estrutura. Com condições.
Cada frase vinha embalada em verniz de cuidado, mas havia um interesse não dito em cada uma delas. A herança estava no ar, invisível, mas presente como cheiro de flor estragando no vaso.
— Não é sobre quem a quer — disse uma mulher, sentada perto da porta. — É sobre o que é melhor pra ela.
Melhor. Todos falavam em “melhor”. Mas ninguém me olhava nos olhos.
Minha avó permaneceu de pé. Imóvel. Os dedos entrelaçados. A postura ereta. A roupa simples, mas limpa. Ela encarava os outros sem desviar o olhar.
— Eu não sou perfeita. Mas eu a conheço. Eu estive lá. Sempre estive.
As vozes começaram a se sobrepor. Nomes de advogados foram ditos. Termos como “guarda provisória”, “reavaliação judicial”, “sugestão do conselho tutelar”. Parecia que, em segundos, eu tinha virado um caso.
Mas eu continuei sentada. Quietamente. Como se não fosse minha vida em debate.
Então ela se virou para mim. Minha avó.
Pela primeira vez desde que falou, ela me olhou. Seus olhos não pediam. Não exigiam. Apenas mostravam tudo o que ela carregava: saudade, medo, amor, cansaço. Um mundo inteiro atrás daquele olhar firme.
— Eu estou aqui. Se você quiser.
A frase caiu no silêncio como uma semente.
Todos olharam para mim. Pela primeira vez naquela noite, realmente me olharam.
Mas eu não disse nada.
Fiquei ali, entre todas aquelas vozes, todos aqueles planos feitos para mim. No centro de uma disputa silenciosa. E sem emitir uma palavra, sem mover um músculo, tornei-me a decisão que ninguém sabia como resolver.
O tempo pareceu se esticar.
A respiração coletiva foi contida.
As perguntas ainda não tinham resposta.
E foi assim que a noite ficou: suspensa.
Como se o tempo tivesse parado num fio tênue entre o que já foi dito e o que ainda viria.
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Atualizado até capítulo 28
Comments
SweetPoison
Eu não queria terminar esta história, queria que durasse para sempre.
2025-07-15
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