Capítulo 5 – A Resistência do Papel

Na manhã seguinte, o céu estava limpo, quase ofuscante em seu azul absoluto. Mas dentro da mansão dos Vasconcellos, o clima era tudo menos claro.

Helena caminhava pelos corredores como quem pisa em solo estranho. E era exatamente isso. A cada sala, a cada olhar da criadagem, ela sentia que sua mudança não havia passado despercebida. Elisa sempre fora gentil, mas apagada. Obediente. Elegante, mas discreta. A jovem perfeita para um noivo ambicioso e para uma sociedade que exigia conformidade feminina como moeda de aceitação.

Mas a nova Elisa — Helena — não tinha interesse em se curvar.

E agora, todos sabiam.

— Você está me envergonhando, Elisa — disse a voz fria e controlada de dona Eulália Vasconcellos, mãe de Arthur, enquanto repousava sua xícara de porcelana sobre o pires com um clique seco.

Sentadas na sala de visitas, rodeadas por cortinas pesadas, móveis dourados e retratos de antepassados julgadores, Helena enfrentava sua primeira prova pública.

— Desculpe, mas não entendo por que dançar com o general Monteiro seria motivo de vergonha. Estávamos em um baile, e ele foi... surpreendentemente gentil — respondeu ela, com um sorriso sereno.

Dona Eulália entrelaçou os dedos com elegância estudada.

— Ele não pertence ao seu círculo, minha querida. É um homem quebrado. Antissocial. Um militar. O tipo de homem que não compreende as sutilezas que regem famílias como a nossa.

Helena sustentou o olhar.

— Talvez o problema esteja exatamente nisso: nessas “sutilezas”.

A senhora quase perdeu o fôlego. Antes que pudesse rebater, a porta se abriu abruptamente e Arthur entrou.

— Mãe, me dá licença. Preciso conversar com Elisa — disse ele, tenso, porém tentando manter a compostura.

Dona Eulália levantou-se com um suspiro teatral.

— Pense no que está fazendo, Elisa. Uma mulher pode arruinar toda a própria vida por causa de um capricho.

Quando ficaram sozinhos, Arthur se aproximou devagar. Seus olhos estavam frios.

— O que está acontecendo com você?

Helena permaneceu sentada, imperturbável.

— Nada está acontecendo comigo, Arthur. Talvez você só esteja vendo quem eu realmente sou.

— Você está colocando tudo em risco. O noivado, nossa reputação, os planos para o casamento...

— E você, Arthur? O que você colocava em risco toda vez que se encontrava com Clarice às escondidas?

A pergunta caiu como uma bomba entre eles. Arthur empalideceu.

— Você… não tem provas.

— Eu não preciso de provas. Eu li você. Inteiro. E, acredite, sua história não merece recomeço.

Ele se aproximou, abaixando a voz.

— Você acha que pode simplesmente mudar tudo? Recusar o que foi planejado? Romper um noivado público? Dançar com um homem como aquele? Vai se tornar motivo de escândalo.

— Então que seja — disse ela, levantando-se. — Que minha queda seja minha. Não quero mais viver em páginas escritas por outros.

Arthur a observou com olhos estreitos, como se tentasse encontrar dentro dela a antiga Elisa — mas ela não estava mais lá.

— Vai se arrepender — ele disse, e não era uma ameaça. Era um aviso de um homem acostumado a vencer por omissão.

Helena apenas saiu da sala sem responder. E ao cruzar o corredor, encontrou Dora, a criada, observando tudo de canto.

— Estão dizendo que a senhorita está... diferente — disse Dora, num sussurro cúmplice. — Mas… por favor, não volte a ser como antes.

Helena sentiu um nó na garganta. Tocou o braço da jovem com carinho.

— Não se preocupe. Isso… não é uma fase. É um retorno.

Naquela mesma tarde, ao se refugiar na biblioteca da casa, encontrou o antigo diário de Elisa. Folheou as páginas e viu ali a vida da personagem que um dia fora. Os medos. A insegurança. O amor cego por Arthur. As dúvidas nunca ditas. As cartas que nunca enviou.

Fechou o caderno com delicadeza, mas firmeza.

Aquilo agora era o passado.

Na última página, pegou uma caneta e escreveu com sua caligrafia firme:

“Hoje, rompi com a Elisa que todos esperavam.

Hoje, escolhi viver a história como ela nunca foi contada.”

E então, dobrou a página, selando o diário.

Estava pronta.

À noite, um novo bilhete chegou.

“Amanhã. Ao nascer do sol. Quartel de observação, ala leste. Alexander.”

Ela sorriu.

A história — a verdadeira — começava a ganhar forma.

A noite caiu como um manto de chumbo sobre a mansão dos Vasconcellos.

Helena permaneceu em silêncio durante o jantar, sob o olhar atento de cada parente e convidado. A conversa à mesa girava em torno de temas amenos — política, colheitas, a nova temporada de concertos em Viena — mas a tensão era tão espessa quanto o vinho nos cálices.

Ela não precisava levantar os olhos para saber que era o assunto principal.

— Não se fala em outra coisa — comentou tia Adélia, servindo-se de um pedaço de torta. — Elisa dançando com o general. Francamente, a cidade inteira sabe do temperamento dele. Que espécie de moça bem criada procuraria a companhia de um homem como aquele?

— Uma moça que cansou de fazer o papel da boneca bem criada — respondeu Helena, com doçura gélida. E então, cortou um pedaço da torta com toda a calma do mundo.

O garfo parou no ar. Silêncio.

Arthur tossiu discretamente. O pai dele forçou um sorriso. O mordomo fingiu não ouvir.

Ninguém sabia como responder a uma Elisa que já não se encaixava.

Mais tarde, em seu quarto, Helena encarou o espelho por longos minutos.

Não era mais o rosto que via nas capas de sociedade. Era outro. Mais firme. Menos passivo. Havia um brilho nos olhos que não vinha da maquiagem ou da luz. Vinha de dentro. E ela sabia: quanto mais mostrasse essa versão de si mesma, mais resistências surgiriam.

Mas não tinha medo.

Enquanto trocava o vestido por uma camisola leve, algo chamou sua atenção.

Sobre a mesinha de cabeceira, um pequeno envelope branco. Nenhum selo. Nenhuma assinatura. Apenas o nome “Elisa” escrito à mão com uma caligrafia austera e elegante.

Helena abriu com cautela. Dentro, havia apenas uma frase escrita com firmeza:

“Continue.”

Nada mais.

Mas ela sabia. Aquela letra era dele. Alexander.

Do outro lado da cidade, em seu escritório, o general Monteiro observava a lareira quase apagada. Os dedos entrelaçados sobre a mesa, o rosto austero sob a luz tênue do abajur.

Alguém havia comentado no clube militar que a senhorita Vasconcellos se tornara... inconvenientemente curiosa. Que fizera perguntas que uma dama não faria. Que havia expressado opiniões com mais firmeza do que o adequado. E principalmente — que se recusara a sorrir por educação.

Ele ouvira tudo em silêncio. Como fazia com a maioria das coisas.

Mas não era indiferença. Era cautela.

Elisa — ou o que quer que ela fosse agora — estava se tornando um ponto fora da curva.

E ele estava se permitindo olhar para esse ponto com interesse.

Pensou em não escrever. Pensou em se afastar. Mas havia algo nela que o impedia de ignorar. Algo que lembrava um campo de batalha: tenso, perigoso, e ainda assim... impossível de abandonar.

Quando assinou o bilhete com a única palavra que se permitiu escrever — "Continue" — foi a primeira rendição dele em muitos anos.

Helena segurou o bilhete com as pontas dos dedos por mais alguns segundos. Depois, dobrou-o com delicadeza e o guardou dentro do diário de Elisa.

Não precisava de explicações. Nem de promessas.

Precisava apenas disso: um sinal de que não estava sozinha nessa revolução silenciosa.

Amanhã, ela iria ao quartel. Ao nascer do sol. E pela primeira vez, não como uma noiva escandalizada ou uma dama em crise.

Mas como uma mulher disposta a conhecer o homem por trás do fardamento.

E deixar que ele conhecesse a leitora por trás da personagem.

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New Biana

New Biana

Isso aí Elisa mostra o teu poder.

2025-07-27

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Capítulos
1 Capítulo 1 – A Página em Branco
2 Capítulo 2 – A História que Eu Já Li
3 Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram
4 Capítulo 4 – Onde o Silêncio Fala
5 Capítulo 5 – A Resistência do Papel
6 Capítulo 6 – Entre Ruínas e Promessas
7 Capítulo 7 – O Estilhaçar do Nome
8 Capítulo 8 – A Guerra que Nunca Terminou
9 Capítulo 9 – A Primeira Batalha
10 Capítulo 10 – Vozes Queimadas Não se Calam
11 Capítulo 11 – Escreva Até Que Eles Não Possam Apagar
12 Capítulo 12 – As Coisas Que Não Foram Ditas
13 Capítulo 13 – Aquilo Que Ninguém Consegue Desfazer
14 Capítulo 14 – Onde as Palavras Criam Raízes
15 Capítulo 15 – E Se Ninguém Mais Falar?
16 Capítulo 16 – A Mulher Que Veio do Inverno
17 Capítulo 17 – O Dia em Que Quiseram Nos Apagar
18 Capítulo 18 – Quando a Voz Vira Eco
19 Capítulo 19 – Quando a Verdade Vira Tempestade
20 Capítulo 20 – O Dia em Que o País Leu em Voz Alta
21 Capítulo 21 – A Cidade Onde a Voz Ganhou Eco
22 Capítulo 22 – A Caminho das Vozes
23 Capítulo 23 – Cortes e Enredos
24 Capítulo 24 – Quando Virei Outra
25 Capítulo 25 – O Dia em Que Me Tornei Múltipla
26 Capítulo 26 – Vozes Que Escrevem de Pé
27 Capítulo 27 – Quando a Voz Vira Tiro
28 Capítulo 28 – A Carta que Veio de Mim
29 Capítulo 29 – A História Que Nunca Quis Ser Manchete
30 Capítulo 30 – A Menina Que Não Sabia Ser Filha
31 Capítulo 31 – A Viagem Que Me Inventou de Novo
32 Capítulo 32 – A Voz Que Já Não É Só Minha
33 Capítulo 33 – Vozes Que Não Precisam Gritar
34 Capítulo 34 – O Dia em Que o Silêncio Virou Palco
35 Capítulo 35 – O Livro Que Começa no Vazio
36 Capítulo 36 – O Mundo Escutando Devagar
37 Capítulo 37 – O Lugar Para Onde Voltamos Quando Precisamos
38 Capítulo 38 – A Menina Que Gritava o Que Sentia
39 Capítulo 39 – Aquilo Que Volta Só Quando Está Pronto
40 Capítulo 40 – O Nome que Escolhi Pra Mim
41 Capítulo 41 – O Livro Que Eu Nunca Tive Coragem de Escrever
42 Capítulo 42 – A Carta Que Veio de Volta
43 Capítulo 43 – A Última Oficina
44 Capítulo 44 – Onde Terminam as Palavras
45 Epílogo – O Caderno Esquecido
Capítulos

Atualizado até capítulo 45

1
Capítulo 1 – A Página em Branco
2
Capítulo 2 – A História que Eu Já Li
3
Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram
4
Capítulo 4 – Onde o Silêncio Fala
5
Capítulo 5 – A Resistência do Papel
6
Capítulo 6 – Entre Ruínas e Promessas
7
Capítulo 7 – O Estilhaçar do Nome
8
Capítulo 8 – A Guerra que Nunca Terminou
9
Capítulo 9 – A Primeira Batalha
10
Capítulo 10 – Vozes Queimadas Não se Calam
11
Capítulo 11 – Escreva Até Que Eles Não Possam Apagar
12
Capítulo 12 – As Coisas Que Não Foram Ditas
13
Capítulo 13 – Aquilo Que Ninguém Consegue Desfazer
14
Capítulo 14 – Onde as Palavras Criam Raízes
15
Capítulo 15 – E Se Ninguém Mais Falar?
16
Capítulo 16 – A Mulher Que Veio do Inverno
17
Capítulo 17 – O Dia em Que Quiseram Nos Apagar
18
Capítulo 18 – Quando a Voz Vira Eco
19
Capítulo 19 – Quando a Verdade Vira Tempestade
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Capítulo 20 – O Dia em Que o País Leu em Voz Alta
21
Capítulo 21 – A Cidade Onde a Voz Ganhou Eco
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Capítulo 22 – A Caminho das Vozes
23
Capítulo 23 – Cortes e Enredos
24
Capítulo 24 – Quando Virei Outra
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Capítulo 25 – O Dia em Que Me Tornei Múltipla
26
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Capítulo 36 – O Mundo Escutando Devagar
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Capítulo 37 – O Lugar Para Onde Voltamos Quando Precisamos
38
Capítulo 38 – A Menina Que Gritava o Que Sentia
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Capítulo 40 – O Nome que Escolhi Pra Mim
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Capítulo 41 – O Livro Que Eu Nunca Tive Coragem de Escrever
42
Capítulo 42 – A Carta Que Veio de Volta
43
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44
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45
Epílogo – O Caderno Esquecido

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