Na manhã seguinte, o céu estava limpo, quase ofuscante em seu azul absoluto. Mas dentro da mansão dos Vasconcellos, o clima era tudo menos claro.
Helena caminhava pelos corredores como quem pisa em solo estranho. E era exatamente isso. A cada sala, a cada olhar da criadagem, ela sentia que sua mudança não havia passado despercebida. Elisa sempre fora gentil, mas apagada. Obediente. Elegante, mas discreta. A jovem perfeita para um noivo ambicioso e para uma sociedade que exigia conformidade feminina como moeda de aceitação.
Mas a nova Elisa — Helena — não tinha interesse em se curvar.
E agora, todos sabiam.
— Você está me envergonhando, Elisa — disse a voz fria e controlada de dona Eulália Vasconcellos, mãe de Arthur, enquanto repousava sua xícara de porcelana sobre o pires com um clique seco.
Sentadas na sala de visitas, rodeadas por cortinas pesadas, móveis dourados e retratos de antepassados julgadores, Helena enfrentava sua primeira prova pública.
— Desculpe, mas não entendo por que dançar com o general Monteiro seria motivo de vergonha. Estávamos em um baile, e ele foi... surpreendentemente gentil — respondeu ela, com um sorriso sereno.
Dona Eulália entrelaçou os dedos com elegância estudada.
— Ele não pertence ao seu círculo, minha querida. É um homem quebrado. Antissocial. Um militar. O tipo de homem que não compreende as sutilezas que regem famílias como a nossa.
Helena sustentou o olhar.
— Talvez o problema esteja exatamente nisso: nessas “sutilezas”.
A senhora quase perdeu o fôlego. Antes que pudesse rebater, a porta se abriu abruptamente e Arthur entrou.
— Mãe, me dá licença. Preciso conversar com Elisa — disse ele, tenso, porém tentando manter a compostura.
Dona Eulália levantou-se com um suspiro teatral.
— Pense no que está fazendo, Elisa. Uma mulher pode arruinar toda a própria vida por causa de um capricho.
Quando ficaram sozinhos, Arthur se aproximou devagar. Seus olhos estavam frios.
— O que está acontecendo com você?
Helena permaneceu sentada, imperturbável.
— Nada está acontecendo comigo, Arthur. Talvez você só esteja vendo quem eu realmente sou.
— Você está colocando tudo em risco. O noivado, nossa reputação, os planos para o casamento...
— E você, Arthur? O que você colocava em risco toda vez que se encontrava com Clarice às escondidas?
A pergunta caiu como uma bomba entre eles. Arthur empalideceu.
— Você… não tem provas.
— Eu não preciso de provas. Eu li você. Inteiro. E, acredite, sua história não merece recomeço.
Ele se aproximou, abaixando a voz.
— Você acha que pode simplesmente mudar tudo? Recusar o que foi planejado? Romper um noivado público? Dançar com um homem como aquele? Vai se tornar motivo de escândalo.
— Então que seja — disse ela, levantando-se. — Que minha queda seja minha. Não quero mais viver em páginas escritas por outros.
Arthur a observou com olhos estreitos, como se tentasse encontrar dentro dela a antiga Elisa — mas ela não estava mais lá.
— Vai se arrepender — ele disse, e não era uma ameaça. Era um aviso de um homem acostumado a vencer por omissão.
Helena apenas saiu da sala sem responder. E ao cruzar o corredor, encontrou Dora, a criada, observando tudo de canto.
— Estão dizendo que a senhorita está... diferente — disse Dora, num sussurro cúmplice. — Mas… por favor, não volte a ser como antes.
Helena sentiu um nó na garganta. Tocou o braço da jovem com carinho.
— Não se preocupe. Isso… não é uma fase. É um retorno.
Naquela mesma tarde, ao se refugiar na biblioteca da casa, encontrou o antigo diário de Elisa. Folheou as páginas e viu ali a vida da personagem que um dia fora. Os medos. A insegurança. O amor cego por Arthur. As dúvidas nunca ditas. As cartas que nunca enviou.
Fechou o caderno com delicadeza, mas firmeza.
Aquilo agora era o passado.
Na última página, pegou uma caneta e escreveu com sua caligrafia firme:
“Hoje, rompi com a Elisa que todos esperavam.
Hoje, escolhi viver a história como ela nunca foi contada.”
E então, dobrou a página, selando o diário.
Estava pronta.
À noite, um novo bilhete chegou.
“Amanhã. Ao nascer do sol. Quartel de observação, ala leste. Alexander.”
Ela sorriu.
A história — a verdadeira — começava a ganhar forma.
A noite caiu como um manto de chumbo sobre a mansão dos Vasconcellos.
Helena permaneceu em silêncio durante o jantar, sob o olhar atento de cada parente e convidado. A conversa à mesa girava em torno de temas amenos — política, colheitas, a nova temporada de concertos em Viena — mas a tensão era tão espessa quanto o vinho nos cálices.
Ela não precisava levantar os olhos para saber que era o assunto principal.
— Não se fala em outra coisa — comentou tia Adélia, servindo-se de um pedaço de torta. — Elisa dançando com o general. Francamente, a cidade inteira sabe do temperamento dele. Que espécie de moça bem criada procuraria a companhia de um homem como aquele?
— Uma moça que cansou de fazer o papel da boneca bem criada — respondeu Helena, com doçura gélida. E então, cortou um pedaço da torta com toda a calma do mundo.
O garfo parou no ar. Silêncio.
Arthur tossiu discretamente. O pai dele forçou um sorriso. O mordomo fingiu não ouvir.
Ninguém sabia como responder a uma Elisa que já não se encaixava.
Mais tarde, em seu quarto, Helena encarou o espelho por longos minutos.
Não era mais o rosto que via nas capas de sociedade. Era outro. Mais firme. Menos passivo. Havia um brilho nos olhos que não vinha da maquiagem ou da luz. Vinha de dentro. E ela sabia: quanto mais mostrasse essa versão de si mesma, mais resistências surgiriam.
Mas não tinha medo.
Enquanto trocava o vestido por uma camisola leve, algo chamou sua atenção.
Sobre a mesinha de cabeceira, um pequeno envelope branco. Nenhum selo. Nenhuma assinatura. Apenas o nome “Elisa” escrito à mão com uma caligrafia austera e elegante.
Helena abriu com cautela. Dentro, havia apenas uma frase escrita com firmeza:
“Continue.”
Nada mais.
Mas ela sabia. Aquela letra era dele. Alexander.
Do outro lado da cidade, em seu escritório, o general Monteiro observava a lareira quase apagada. Os dedos entrelaçados sobre a mesa, o rosto austero sob a luz tênue do abajur.
Alguém havia comentado no clube militar que a senhorita Vasconcellos se tornara... inconvenientemente curiosa. Que fizera perguntas que uma dama não faria. Que havia expressado opiniões com mais firmeza do que o adequado. E principalmente — que se recusara a sorrir por educação.
Ele ouvira tudo em silêncio. Como fazia com a maioria das coisas.
Mas não era indiferença. Era cautela.
Elisa — ou o que quer que ela fosse agora — estava se tornando um ponto fora da curva.
E ele estava se permitindo olhar para esse ponto com interesse.
Pensou em não escrever. Pensou em se afastar. Mas havia algo nela que o impedia de ignorar. Algo que lembrava um campo de batalha: tenso, perigoso, e ainda assim... impossível de abandonar.
Quando assinou o bilhete com a única palavra que se permitiu escrever — "Continue" — foi a primeira rendição dele em muitos anos.
Helena segurou o bilhete com as pontas dos dedos por mais alguns segundos. Depois, dobrou-o com delicadeza e o guardou dentro do diário de Elisa.
Não precisava de explicações. Nem de promessas.
Precisava apenas disso: um sinal de que não estava sozinha nessa revolução silenciosa.
Amanhã, ela iria ao quartel. Ao nascer do sol. E pela primeira vez, não como uma noiva escandalizada ou uma dama em crise.
Mas como uma mulher disposta a conhecer o homem por trás do fardamento.
E deixar que ele conhecesse a leitora por trás da personagem.
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Atualizado até capítulo 45
Comments
New Biana
Isso aí Elisa mostra o teu poder.
2025-07-27
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