Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram

Alexander Monteiro não era um homem fácil de impressionar.

A guerra havia esculpido em seu corpo cicatrizes que não se mostravam. Carregava no olhar o peso de batalhas que ninguém mais se lembrava. Soldados, uma vez vivos sob seu comando, agora viviam apenas nas sombras de sua memória. Havia aprendido a não criar vínculos, a não se apegar a ninguém, a manter o mundo a uma distância segura — como um animal ferido que aprendeu que até o toque mais suave pode doer.

Por isso, quando dançou com Elisa Vasconcellos naquela noite, sentiu algo que não soube nomear.

Ela estava... diferente.

Não diferente como quem muda o penteado ou escolhe outro perfume. Era algo mais profundo, quase invisível, como uma sombra que se movia fora do lugar. Seus olhos tinham uma luz que ele não lembrava de ter visto antes. Uma firmeza que beirava o desafio. Ela parecia saber coisas que os outros ignoravam, e não fazia questão de esconder isso.

Isso o incomodava. Mas o intrigava ainda mais.

Depois do baile, Alexander caminhou sozinho até sua casa, recusando o convite de qualquer transporte. As ruas estavam calmas, o ar úmido da noite esfriava sua pele, e seus passos ecoavam solitários pelas pedras do calçamento. Ele gostava do silêncio. Sempre gostara. Era onde se sentia mais inteiro — ou talvez menos despedaçado.

Mas, naquela noite, o silêncio não trouxe paz.

Trazia a lembrança dela.

Dos olhos fixos nos dele, como se o enxergasse de verdade. Das palavras enigmáticas — “em outra versão da minha vida, essa cena nunca aconteceu”. O que ela queria dizer com isso?

Ele parou diante da porta de casa, hesitou antes de entrar. Olhou para o céu, onde a lua se escondia atrás de nuvens pesadas. Tinha a estranha sensação de que algo estava prestes a mudar.

Na manhã seguinte, já uniformizado, Alexander percorreu os corredores do clube militar onde supervisionava algumas questões logísticas. Mas sua mente não estava ali. Pela primeira vez em muito tempo, não conseguia se concentrar por completo. Os relatórios, os mapas, os pedidos de armamento — tudo parecia distante, como ruído de fundo.

Foi surpreendido ao receber um bilhete entregue por um soldado:

**“General Monteiro, peço desculpas pela ousadia. Mas gostaria de vê-lo. Há coisas que preciso dizer — coisas que talvez o senhor deva ouvir.

Com respeito,

Elisa Vasconcellos.”**

Ele releu o bilhete duas vezes. Aquilo era completamente fora do comportamento esperado de uma dama da sociedade. Elisa jamais teria enviado algo assim. Mas… e se fosse verdade? E se ela estivesse mesmo tentando dizer algo que ninguém mais tinha coragem?

A parte racional dele gritou para ignorar. Para manter a distância. Mas havia uma parte adormecida, que Helena — aquela nova Elisa — havia cutucado, feito respirar de novo.

Naquela tarde, ele foi até os jardins da biblioteca municipal, o local indicado por ela. Chegou antes do horário. Sempre chegava antes. Era hábito. Estratégia. Costume de quem precisava antecipar tudo para sobreviver.

E então ela apareceu.

O vestido era simples, bege e leve. Os cabelos presos com discrição. Ela não parecia tentar impressioná-lo. Não fingia charme, nem inocência. Caminhava com propósito, os olhos fixos nos dele. E, quando parou a poucos passos de distância, sorriu — um sorriso sem artifícios.

— Obrigada por ter vindo.

— Confesso que não sabia se viria — ele respondeu. — Mas... aqui estou.

Ela assentiu, como se já soubesse disso.

— Eu preciso conversar com o senhor — disse, e sua voz agora soava mais calma do que na noite anterior. — Preciso que me ouça sem me interromper. E, depois, se quiser nunca mais me ver, prometo desaparecer.

Ele arqueou uma sobrancelha, cauteloso, mas indicou com um gesto que ela prosseguisse.

Helena se sentou num dos bancos de pedra do jardim. O sol da tarde aquecia suavemente, lançando feixes de luz entre as árvores.

— Eu sei quem o senhor é — ela começou. — Ou melhor… acho que sei. Sei o que dizem sobre o senhor, o que não dizem também. Sei que perdeu sua esposa. Sei que voltou da guerra com feridas que ninguém entende. E sei que prefere o silêncio às mentiras.

Alexander manteve o rosto impassível, mas dentro dele, algo se mexeu.

— Sei também — ela continuou — que muitos o julgam pela frieza, pela rigidez, pela solidão. Mas não é isso que me interessa. O que me interessa é saber o que está atrás dessa muralha. O que ainda está vivo aí dentro.

Silêncio.

O vento soprou levemente, agitando as folhas.

Ela respirou fundo.

— A Elisa que o senhor conheceu... era uma sombra. Era o que esperavam que ela fosse. Mas eu não sou mais aquela mulher. E não quero fingir que sou.

Ele enfim se aproximou, parando diante dela. Não se sentou. Apenas olhou de cima, o semblante tenso.

— E o que você é agora?

Helena ergueu os olhos e respondeu, com serenidade:

— Alguém que sabe exatamente para onde essa história está indo. E que se recusa a seguir o roteiro.

Ele franziu o cenho.

— Que história?

— Esta — ela disse. — A nossa. A de todos aqui. Uma história escrita há muito tempo, onde tudo já estava decidido. Quem trai, quem sofre, quem vive e quem apenas sobrevive. Mas eu não aceito mais isso.

Os olhos dele se estreitaram. Por um momento, ele a observou como se estivesse diante de um enigma. Algo perigoso. Algo que podia tanto salvá-lo quanto destruí-lo.

E então, finalmente, ele falou.

— Nunca conheci alguém que falasse com tanta convicção sobre o que não pode ser provado.

— Porque eu não vim para provar. Vim para mudar — ela respondeu.

Ele respirou fundo, cruzando os braços.

— Mudar custa caro, senhorita Vasconcellos. E quem tenta... geralmente se arrepende.

— E quem não tenta, vive na sombra dos outros — ela rebateu, com suavidade. — Eu prefiro arriscar.

Alexander a olhou por mais alguns segundos. E então, com uma voz quase inaudível, disse:

— Não venha me buscar se não estiver disposta a ver minhas cicatrizes. Elas não são pequenas.

Helena se levantou, sem desviar o olhar.

— Eu tenho as minhas também, general. Talvez as suas sejam visíveis. As minhas… estavam escondidas atrás de sorrisos e vestidos bonitos. Mas agora eu cansei de escondê-las.

Por um momento, o mundo pareceu se aquietar ao redor deles. Os pássaros cessaram, o vento parou, o tempo ficou suspenso. E naquela pausa cheia de significados, algo foi firmado — uma trégua, um reconhecimento, um começo.

Ela se virou e começou a se afastar. E, quando achava que ele não diria mais nada, ouviu sua voz firme atrás de si:

— Elisa…

— Sim? — ela respondeu, virando-se levemente.

— Se quiser me encontrar de novo… vá até o lago. Amanhã, ao pôr do sol. Mas vá sozinha.

Ela assentiu, com um leve sorriso nos lábios.

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Comments

New Biana

New Biana

Ela podia ser mais direta mas estou gostando da história kkk.

mas o que aconteceu no baile? ela recusou o Artur?

2025-07-27

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Capítulos
1 Capítulo 1 – A Página em Branco
2 Capítulo 2 – A História que Eu Já Li
3 Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram
4 Capítulo 4 – Onde o Silêncio Fala
5 Capítulo 5 – A Resistência do Papel
6 Capítulo 6 – Entre Ruínas e Promessas
7 Capítulo 7 – O Estilhaçar do Nome
8 Capítulo 8 – A Guerra que Nunca Terminou
9 Capítulo 9 – A Primeira Batalha
10 Capítulo 10 – Vozes Queimadas Não se Calam
11 Capítulo 11 – Escreva Até Que Eles Não Possam Apagar
12 Capítulo 12 – As Coisas Que Não Foram Ditas
13 Capítulo 13 – Aquilo Que Ninguém Consegue Desfazer
14 Capítulo 14 – Onde as Palavras Criam Raízes
15 Capítulo 15 – E Se Ninguém Mais Falar?
16 Capítulo 16 – A Mulher Que Veio do Inverno
17 Capítulo 17 – O Dia em Que Quiseram Nos Apagar
18 Capítulo 18 – Quando a Voz Vira Eco
19 Capítulo 19 – Quando a Verdade Vira Tempestade
20 Capítulo 20 – O Dia em Que o País Leu em Voz Alta
21 Capítulo 21 – A Cidade Onde a Voz Ganhou Eco
22 Capítulo 22 – A Caminho das Vozes
23 Capítulo 23 – Cortes e Enredos
24 Capítulo 24 – Quando Virei Outra
25 Capítulo 25 – O Dia em Que Me Tornei Múltipla
26 Capítulo 26 – Vozes Que Escrevem de Pé
27 Capítulo 27 – Quando a Voz Vira Tiro
28 Capítulo 28 – A Carta que Veio de Mim
29 Capítulo 29 – A História Que Nunca Quis Ser Manchete
30 Capítulo 30 – A Menina Que Não Sabia Ser Filha
31 Capítulo 31 – A Viagem Que Me Inventou de Novo
32 Capítulo 32 – A Voz Que Já Não É Só Minha
33 Capítulo 33 – Vozes Que Não Precisam Gritar
34 Capítulo 34 – O Dia em Que o Silêncio Virou Palco
35 Capítulo 35 – O Livro Que Começa no Vazio
36 Capítulo 36 – O Mundo Escutando Devagar
37 Capítulo 37 – O Lugar Para Onde Voltamos Quando Precisamos
38 Capítulo 38 – A Menina Que Gritava o Que Sentia
39 Capítulo 39 – Aquilo Que Volta Só Quando Está Pronto
40 Capítulo 40 – O Nome que Escolhi Pra Mim
41 Capítulo 41 – O Livro Que Eu Nunca Tive Coragem de Escrever
42 Capítulo 42 – A Carta Que Veio de Volta
43 Capítulo 43 – A Última Oficina
44 Capítulo 44 – Onde Terminam as Palavras
45 Epílogo – O Caderno Esquecido
Capítulos

Atualizado até capítulo 45

1
Capítulo 1 – A Página em Branco
2
Capítulo 2 – A História que Eu Já Li
3
Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram
4
Capítulo 4 – Onde o Silêncio Fala
5
Capítulo 5 – A Resistência do Papel
6
Capítulo 6 – Entre Ruínas e Promessas
7
Capítulo 7 – O Estilhaçar do Nome
8
Capítulo 8 – A Guerra que Nunca Terminou
9
Capítulo 9 – A Primeira Batalha
10
Capítulo 10 – Vozes Queimadas Não se Calam
11
Capítulo 11 – Escreva Até Que Eles Não Possam Apagar
12
Capítulo 12 – As Coisas Que Não Foram Ditas
13
Capítulo 13 – Aquilo Que Ninguém Consegue Desfazer
14
Capítulo 14 – Onde as Palavras Criam Raízes
15
Capítulo 15 – E Se Ninguém Mais Falar?
16
Capítulo 16 – A Mulher Que Veio do Inverno
17
Capítulo 17 – O Dia em Que Quiseram Nos Apagar
18
Capítulo 18 – Quando a Voz Vira Eco
19
Capítulo 19 – Quando a Verdade Vira Tempestade
20
Capítulo 20 – O Dia em Que o País Leu em Voz Alta
21
Capítulo 21 – A Cidade Onde a Voz Ganhou Eco
22
Capítulo 22 – A Caminho das Vozes
23
Capítulo 23 – Cortes e Enredos
24
Capítulo 24 – Quando Virei Outra
25
Capítulo 25 – O Dia em Que Me Tornei Múltipla
26
Capítulo 26 – Vozes Que Escrevem de Pé
27
Capítulo 27 – Quando a Voz Vira Tiro
28
Capítulo 28 – A Carta que Veio de Mim
29
Capítulo 29 – A História Que Nunca Quis Ser Manchete
30
Capítulo 30 – A Menina Que Não Sabia Ser Filha
31
Capítulo 31 – A Viagem Que Me Inventou de Novo
32
Capítulo 32 – A Voz Que Já Não É Só Minha
33
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34
Capítulo 34 – O Dia em Que o Silêncio Virou Palco
35
Capítulo 35 – O Livro Que Começa no Vazio
36
Capítulo 36 – O Mundo Escutando Devagar
37
Capítulo 37 – O Lugar Para Onde Voltamos Quando Precisamos
38
Capítulo 38 – A Menina Que Gritava o Que Sentia
39
Capítulo 39 – Aquilo Que Volta Só Quando Está Pronto
40
Capítulo 40 – O Nome que Escolhi Pra Mim
41
Capítulo 41 – O Livro Que Eu Nunca Tive Coragem de Escrever
42
Capítulo 42 – A Carta Que Veio de Volta
43
Capítulo 43 – A Última Oficina
44
Capítulo 44 – Onde Terminam as Palavras
45
Epílogo – O Caderno Esquecido

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