Alexander Monteiro não era um homem fácil de impressionar.
A guerra havia esculpido em seu corpo cicatrizes que não se mostravam. Carregava no olhar o peso de batalhas que ninguém mais se lembrava. Soldados, uma vez vivos sob seu comando, agora viviam apenas nas sombras de sua memória. Havia aprendido a não criar vínculos, a não se apegar a ninguém, a manter o mundo a uma distância segura — como um animal ferido que aprendeu que até o toque mais suave pode doer.
Por isso, quando dançou com Elisa Vasconcellos naquela noite, sentiu algo que não soube nomear.
Ela estava... diferente.
Não diferente como quem muda o penteado ou escolhe outro perfume. Era algo mais profundo, quase invisível, como uma sombra que se movia fora do lugar. Seus olhos tinham uma luz que ele não lembrava de ter visto antes. Uma firmeza que beirava o desafio. Ela parecia saber coisas que os outros ignoravam, e não fazia questão de esconder isso.
Isso o incomodava. Mas o intrigava ainda mais.
Depois do baile, Alexander caminhou sozinho até sua casa, recusando o convite de qualquer transporte. As ruas estavam calmas, o ar úmido da noite esfriava sua pele, e seus passos ecoavam solitários pelas pedras do calçamento. Ele gostava do silêncio. Sempre gostara. Era onde se sentia mais inteiro — ou talvez menos despedaçado.
Mas, naquela noite, o silêncio não trouxe paz.
Trazia a lembrança dela.
Dos olhos fixos nos dele, como se o enxergasse de verdade. Das palavras enigmáticas — “em outra versão da minha vida, essa cena nunca aconteceu”. O que ela queria dizer com isso?
Ele parou diante da porta de casa, hesitou antes de entrar. Olhou para o céu, onde a lua se escondia atrás de nuvens pesadas. Tinha a estranha sensação de que algo estava prestes a mudar.
Na manhã seguinte, já uniformizado, Alexander percorreu os corredores do clube militar onde supervisionava algumas questões logísticas. Mas sua mente não estava ali. Pela primeira vez em muito tempo, não conseguia se concentrar por completo. Os relatórios, os mapas, os pedidos de armamento — tudo parecia distante, como ruído de fundo.
Foi surpreendido ao receber um bilhete entregue por um soldado:
**“General Monteiro, peço desculpas pela ousadia. Mas gostaria de vê-lo. Há coisas que preciso dizer — coisas que talvez o senhor deva ouvir.
Com respeito,
Elisa Vasconcellos.”**
Ele releu o bilhete duas vezes. Aquilo era completamente fora do comportamento esperado de uma dama da sociedade. Elisa jamais teria enviado algo assim. Mas… e se fosse verdade? E se ela estivesse mesmo tentando dizer algo que ninguém mais tinha coragem?
A parte racional dele gritou para ignorar. Para manter a distância. Mas havia uma parte adormecida, que Helena — aquela nova Elisa — havia cutucado, feito respirar de novo.
Naquela tarde, ele foi até os jardins da biblioteca municipal, o local indicado por ela. Chegou antes do horário. Sempre chegava antes. Era hábito. Estratégia. Costume de quem precisava antecipar tudo para sobreviver.
E então ela apareceu.
O vestido era simples, bege e leve. Os cabelos presos com discrição. Ela não parecia tentar impressioná-lo. Não fingia charme, nem inocência. Caminhava com propósito, os olhos fixos nos dele. E, quando parou a poucos passos de distância, sorriu — um sorriso sem artifícios.
— Obrigada por ter vindo.
— Confesso que não sabia se viria — ele respondeu. — Mas... aqui estou.
Ela assentiu, como se já soubesse disso.
— Eu preciso conversar com o senhor — disse, e sua voz agora soava mais calma do que na noite anterior. — Preciso que me ouça sem me interromper. E, depois, se quiser nunca mais me ver, prometo desaparecer.
Ele arqueou uma sobrancelha, cauteloso, mas indicou com um gesto que ela prosseguisse.
Helena se sentou num dos bancos de pedra do jardim. O sol da tarde aquecia suavemente, lançando feixes de luz entre as árvores.
— Eu sei quem o senhor é — ela começou. — Ou melhor… acho que sei. Sei o que dizem sobre o senhor, o que não dizem também. Sei que perdeu sua esposa. Sei que voltou da guerra com feridas que ninguém entende. E sei que prefere o silêncio às mentiras.
Alexander manteve o rosto impassível, mas dentro dele, algo se mexeu.
— Sei também — ela continuou — que muitos o julgam pela frieza, pela rigidez, pela solidão. Mas não é isso que me interessa. O que me interessa é saber o que está atrás dessa muralha. O que ainda está vivo aí dentro.
Silêncio.
O vento soprou levemente, agitando as folhas.
Ela respirou fundo.
— A Elisa que o senhor conheceu... era uma sombra. Era o que esperavam que ela fosse. Mas eu não sou mais aquela mulher. E não quero fingir que sou.
Ele enfim se aproximou, parando diante dela. Não se sentou. Apenas olhou de cima, o semblante tenso.
— E o que você é agora?
Helena ergueu os olhos e respondeu, com serenidade:
— Alguém que sabe exatamente para onde essa história está indo. E que se recusa a seguir o roteiro.
Ele franziu o cenho.
— Que história?
— Esta — ela disse. — A nossa. A de todos aqui. Uma história escrita há muito tempo, onde tudo já estava decidido. Quem trai, quem sofre, quem vive e quem apenas sobrevive. Mas eu não aceito mais isso.
Os olhos dele se estreitaram. Por um momento, ele a observou como se estivesse diante de um enigma. Algo perigoso. Algo que podia tanto salvá-lo quanto destruí-lo.
E então, finalmente, ele falou.
— Nunca conheci alguém que falasse com tanta convicção sobre o que não pode ser provado.
— Porque eu não vim para provar. Vim para mudar — ela respondeu.
Ele respirou fundo, cruzando os braços.
— Mudar custa caro, senhorita Vasconcellos. E quem tenta... geralmente se arrepende.
— E quem não tenta, vive na sombra dos outros — ela rebateu, com suavidade. — Eu prefiro arriscar.
Alexander a olhou por mais alguns segundos. E então, com uma voz quase inaudível, disse:
— Não venha me buscar se não estiver disposta a ver minhas cicatrizes. Elas não são pequenas.
Helena se levantou, sem desviar o olhar.
— Eu tenho as minhas também, general. Talvez as suas sejam visíveis. As minhas… estavam escondidas atrás de sorrisos e vestidos bonitos. Mas agora eu cansei de escondê-las.
Por um momento, o mundo pareceu se aquietar ao redor deles. Os pássaros cessaram, o vento parou, o tempo ficou suspenso. E naquela pausa cheia de significados, algo foi firmado — uma trégua, um reconhecimento, um começo.
Ela se virou e começou a se afastar. E, quando achava que ele não diria mais nada, ouviu sua voz firme atrás de si:
— Elisa…
— Sim? — ela respondeu, virando-se levemente.
— Se quiser me encontrar de novo… vá até o lago. Amanhã, ao pôr do sol. Mas vá sozinha.
Ela assentiu, com um leve sorriso nos lábios.
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Atualizado até capítulo 45
Comments
New Biana
Ela podia ser mais direta mas estou gostando da história kkk.
mas o que aconteceu no baile? ela recusou o Artur?
2025-07-27
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