O General e a Leitora

O General e a Leitora

Capítulo 1 – A Página em Branco

A cidade parecia suspensa no tempo naquela noite de outono. A chuva fina caía com persistência, encharcando as calçadas, lavando telhados, apagando os contornos do mundo lá fora. Dentro do velho apartamento no centro histórico, tudo estava parado, como se o tempo tivesse desacelerado apenas para ela.

Helena estava sozinha. E, curiosamente, não se sentia solitária — havia algo de reconfortante no silêncio absoluto, interrompido apenas pelo som ritmado da água batendo na janela e o tique-taque suave do relógio de parede. Sentada em uma poltrona gasta, coberta por uma manta de lã marrom, ela abraçava um livro como se fosse um relicário.

Não era a primeira vez que lia Corações de Inverno, mas talvez fosse a última. Já conhecia de cor cada capítulo, cada frase. O romance ambientado nos anos 50 era um clássico entre os livros da tia Cecília, agora falecida, e havia sido uma espécie de refúgio desde a adolescência. Sempre voltava a ele nos momentos difíceis — como agora.

Naquela noite, especialmente, precisava fugir. Fugir das mensagens não respondidas, das ligações ignoradas, da lembrança da expressão cínica de Daniel quando ela descobriu a traição. Três anos de relacionamento, dois de convivência e um anel de noivado que agora repousava sobre a cômoda, reluzindo como um símbolo do engano.

Helena se recostou na poltrona e abriu o livro na primeira página, tocando levemente o papel amarelado, sentindo sua textura áspera sob os dedos. As palavras pareciam sussurrar histórias esquecidas, promessas que nunca se cumpriram.

“Elisa caminhava pelo salão com a elegância de uma mulher que fora ensinada a esconder as próprias emoções.”

Helena sorriu de lado. Elisa. A protagonista de Corações de Inverno. Ingênua, gentil, submissa às convenções da época — e completamente cega ao caráter do noivo, Arthur, o queridinho da alta sociedade. Bonito, bem-sucedido, educado… e um canalha. O tipo de homem que sabia exatamente o que dizer para conquistar e exatamente como agir para manter todos ao redor sob controle. Inclusive ela, Elisa. Inclusive Helena, que no fundo, há muito tempo, desconfiava do próprio Daniel, mas nunca teve coragem de ver com clareza.

Ela passou as páginas lentamente, lendo trechos soltos, revisitando as cenas que mais a marcaram. O pedido de casamento no jardim, os bailes de inverno, as cartas trocadas em segredo. Mas o que sempre a intrigara era a figura discreta do General Alexander Monteiro. Um viúvo enigmático, marcado pela guerra e pela dor, que aparecia poucas vezes na trama, mas com uma presença poderosa. Os diálogos curtos, as frases carregadas de subentendidos, os olhares silenciosos. Ele era o oposto de Arthur — e por isso, talvez, mais interessante. Mais real.

"Se eu estivesse naquela história, teria escolhido diferente", murmurou para si mesma, sorrindo com amargura.

A frase ficou no ar, vibrando no silêncio como uma promessa.

O relógio marcou meia-noite. Do lado de fora, um trovão distante ecoou, fazendo a janela tremer levemente. Helena se encolheu na poltrona, puxando a manta até os ombros. A luz da sala piscou, uma… duas vezes… e apagou.

Tudo mergulhou na escuridão.

Ela se levantou devagar, sentindo o frio nos pés descalços contra o piso de madeira. Tateou o caminho até o móvel onde deixara o celular, mas ao tocar o tampo da cômoda, sentiu algo diferente. Um papel. Um envelope. O mesmo envelope que aparecia na cena do noivado de Elisa, no livro. Helena arregalou os olhos. O ar ficou pesado. Havia um perfume antigo no ambiente, algo floral, adocicado e levemente empoeirado — o tipo de aroma que pertence a outras décadas.

Seu coração disparou.

Aos poucos, formas foram se revelando diante dela, como se as sombras se dobrassem para dar lugar a uma nova realidade. O sofá sumiu. A cômoda mudou. O ambiente se transformou. Onde antes havia uma sala de estar comum, agora havia um quarto feminino, elegantemente decorado em tons suaves, com uma penteadeira de espelho oval, uma cama alta com colchas bordadas e uma janela com cortinas rendadas.

E então ela viu o próprio reflexo no espelho.

O vestido claro, de cintura marcada. O penteado delicado. O rosto… ainda era o dela, mas suavemente alterado, como se tivesse sido redesenhado à imagem da época. No envelope à sua frente, em letras desenhadas à mão, lia-se:

“Elisa, o noivado será anunciado esta noite.”

Helena sentiu o chão desaparecer sob seus pés.

Ela estava no livro.

Estava em Corações de Inverno.

E era Elisa agora.

Mas ela conhecia aquela história. Sabia como terminava.

E não permitiria que se repetisse.

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Comments

New Biana

New Biana

Eu gostei antes mesmo de ler.🥰

2025-07-27

0

New Biana

New Biana

Eu gostei antes mesmo de ler.🥰

2025-07-27

0

Vanildo Campos

Vanildo Campos

🤩🤩🤩🤩🤩🤣🤣🤣🤣😬😬😬😬

2025-07-17

0

Ver todos
Capítulos
1 Capítulo 1 – A Página em Branco
2 Capítulo 2 – A História que Eu Já Li
3 Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram
4 Capítulo 4 – Onde o Silêncio Fala
5 Capítulo 5 – A Resistência do Papel
6 Capítulo 6 – Entre Ruínas e Promessas
7 Capítulo 7 – O Estilhaçar do Nome
8 Capítulo 8 – A Guerra que Nunca Terminou
9 Capítulo 9 – A Primeira Batalha
10 Capítulo 10 – Vozes Queimadas Não se Calam
11 Capítulo 11 – Escreva Até Que Eles Não Possam Apagar
12 Capítulo 12 – As Coisas Que Não Foram Ditas
13 Capítulo 13 – Aquilo Que Ninguém Consegue Desfazer
14 Capítulo 14 – Onde as Palavras Criam Raízes
15 Capítulo 15 – E Se Ninguém Mais Falar?
16 Capítulo 16 – A Mulher Que Veio do Inverno
17 Capítulo 17 – O Dia em Que Quiseram Nos Apagar
18 Capítulo 18 – Quando a Voz Vira Eco
19 Capítulo 19 – Quando a Verdade Vira Tempestade
20 Capítulo 20 – O Dia em Que o País Leu em Voz Alta
21 Capítulo 21 – A Cidade Onde a Voz Ganhou Eco
22 Capítulo 22 – A Caminho das Vozes
23 Capítulo 23 – Cortes e Enredos
24 Capítulo 24 – Quando Virei Outra
25 Capítulo 25 – O Dia em Que Me Tornei Múltipla
26 Capítulo 26 – Vozes Que Escrevem de Pé
27 Capítulo 27 – Quando a Voz Vira Tiro
28 Capítulo 28 – A Carta que Veio de Mim
29 Capítulo 29 – A História Que Nunca Quis Ser Manchete
30 Capítulo 30 – A Menina Que Não Sabia Ser Filha
31 Capítulo 31 – A Viagem Que Me Inventou de Novo
32 Capítulo 32 – A Voz Que Já Não É Só Minha
33 Capítulo 33 – Vozes Que Não Precisam Gritar
34 Capítulo 34 – O Dia em Que o Silêncio Virou Palco
35 Capítulo 35 – O Livro Que Começa no Vazio
36 Capítulo 36 – O Mundo Escutando Devagar
37 Capítulo 37 – O Lugar Para Onde Voltamos Quando Precisamos
38 Capítulo 38 – A Menina Que Gritava o Que Sentia
39 Capítulo 39 – Aquilo Que Volta Só Quando Está Pronto
40 Capítulo 40 – O Nome que Escolhi Pra Mim
41 Capítulo 41 – O Livro Que Eu Nunca Tive Coragem de Escrever
42 Capítulo 42 – A Carta Que Veio de Volta
43 Capítulo 43 – A Última Oficina
44 Capítulo 44 – Onde Terminam as Palavras
45 Epílogo – O Caderno Esquecido
Capítulos

Atualizado até capítulo 45

1
Capítulo 1 – A Página em Branco
2
Capítulo 2 – A História que Eu Já Li
3
Capítulo 3 – Feridas que Não Sangram
4
Capítulo 4 – Onde o Silêncio Fala
5
Capítulo 5 – A Resistência do Papel
6
Capítulo 6 – Entre Ruínas e Promessas
7
Capítulo 7 – O Estilhaçar do Nome
8
Capítulo 8 – A Guerra que Nunca Terminou
9
Capítulo 9 – A Primeira Batalha
10
Capítulo 10 – Vozes Queimadas Não se Calam
11
Capítulo 11 – Escreva Até Que Eles Não Possam Apagar
12
Capítulo 12 – As Coisas Que Não Foram Ditas
13
Capítulo 13 – Aquilo Que Ninguém Consegue Desfazer
14
Capítulo 14 – Onde as Palavras Criam Raízes
15
Capítulo 15 – E Se Ninguém Mais Falar?
16
Capítulo 16 – A Mulher Que Veio do Inverno
17
Capítulo 17 – O Dia em Que Quiseram Nos Apagar
18
Capítulo 18 – Quando a Voz Vira Eco
19
Capítulo 19 – Quando a Verdade Vira Tempestade
20
Capítulo 20 – O Dia em Que o País Leu em Voz Alta
21
Capítulo 21 – A Cidade Onde a Voz Ganhou Eco
22
Capítulo 22 – A Caminho das Vozes
23
Capítulo 23 – Cortes e Enredos
24
Capítulo 24 – Quando Virei Outra
25
Capítulo 25 – O Dia em Que Me Tornei Múltipla
26
Capítulo 26 – Vozes Que Escrevem de Pé
27
Capítulo 27 – Quando a Voz Vira Tiro
28
Capítulo 28 – A Carta que Veio de Mim
29
Capítulo 29 – A História Que Nunca Quis Ser Manchete
30
Capítulo 30 – A Menina Que Não Sabia Ser Filha
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Capítulo 31 – A Viagem Que Me Inventou de Novo
32
Capítulo 32 – A Voz Que Já Não É Só Minha
33
Capítulo 33 – Vozes Que Não Precisam Gritar
34
Capítulo 34 – O Dia em Que o Silêncio Virou Palco
35
Capítulo 35 – O Livro Que Começa no Vazio
36
Capítulo 36 – O Mundo Escutando Devagar
37
Capítulo 37 – O Lugar Para Onde Voltamos Quando Precisamos
38
Capítulo 38 – A Menina Que Gritava o Que Sentia
39
Capítulo 39 – Aquilo Que Volta Só Quando Está Pronto
40
Capítulo 40 – O Nome que Escolhi Pra Mim
41
Capítulo 41 – O Livro Que Eu Nunca Tive Coragem de Escrever
42
Capítulo 42 – A Carta Que Veio de Volta
43
Capítulo 43 – A Última Oficina
44
Capítulo 44 – Onde Terminam as Palavras
45
Epílogo – O Caderno Esquecido

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