Helena piscou várias vezes, como se tentar acordar fosse suficiente para romper a ilusão. Mas não havia ilusão. Ela sentia o tecido do vestido apertando sua cintura, os grampos do penteado repuxando levemente o couro cabeludo, o cheiro de lavanda e madeira encerada no ar — e, principalmente, o peso de estar em um mundo que não era o seu, mas que conhecia bem demais.
Ela era Elisa.
Mas, ao mesmo tempo, era ela mesma. Com todas as lembranças, sentimentos e a amarga sabedoria de quem já havia lido aquele livro inúmeras vezes.
Um leve toque na porta a fez se virar com um salto.
— Senhorita Elisa? — uma voz feminina e delicada chamou do outro lado. — Posso entrar?
— Pode… pode sim — disse ela, ainda se acostumando ao som de sua própria voz, agora mais suave, como se tivesse sido moldada pela década de 50.
A porta se abriu e uma jovem de rosto redondo, olhos doces e vestido engomado entrou com passos contidos. Trazia nas mãos uma bandeja de prata com uma xícara de chá e alguns biscoitos.
— A senhora ficou um bom tempo dormindo. Imaginei que quisesse algo quente antes de começar os preparativos.
Preparativos.
Helena soube, no mesmo instante, do que ela falava. Aquela era a noite do baile. O evento em que Arthur, o noivo da personagem Elisa, faria o anúncio oficial do noivado diante de toda a sociedade. O início da queda. Da traição. Da dor.
— Obrigada — disse Helena, com um sorriso ensaiado, tomando a xícara com as mãos ainda um pouco trêmulas. — Qual é o seu nome?
A jovem pareceu surpresa.
— Dora, senhorita. Sou sua criada há três anos…
— Claro, Dora. Desculpe, eu… dormi mal esta noite.
Dora assentiu com um olhar compreensivo e deixou a bandeja na mesinha de canto.
Helena se aproximou da janela. Lá fora, os carros antigos estacionados diante da mansão, os jardins meticulosamente cuidados, as mulheres com vestidos rodados, e os homens de chapéu e paletó — era como assistir a um filme ao vivo. Só que ela estava dentro da cena.
Por um instante, sentiu medo. E se não conseguisse voltar? E se tudo aquilo fosse definitivo? Mas, ao mesmo tempo, uma chama acendeu dentro dela. Pela primeira vez, ela tinha o poder de mudar uma história — de impedir que alguém boa, como Elisa, fosse usada, enganada e descartada.
E mais do que isso: talvez ela mesma pudesse viver um novo destino. Um que não envolvesse anéis quebrados, promessas vazias e sorrisos mentirosos.
— Dora… — chamou ela, com cuidado. — O general Monteiro… ele foi convidado para o baile desta noite?
A criada hesitou, surpresa pela pergunta.
— Foi sim, senhorita. Embora raramente compareça a eventos sociais. Dizem que desde a guerra ele se tornou um homem… difícil.
Helena sorriu de leve.
Ela lembrava. O general Alexander Monteiro aparecia apenas em três capítulos do livro original. O suficiente para marcar. O suficiente para ela nunca ter esquecido o impacto de uma única cena: a dança silenciosa entre ele e Elisa, na penumbra de um salão quase vazio. A dança que nunca aconteceu, porque Elisa, naquele momento, já estava emocionalmente presa a Arthur.
— Espero que ele compareça esta noite — disse, quase como um sussurro.
O salão da mansão dos Vasconcellos estava iluminado com centenas de candelabros e castiçais, o chão de mármore polido refletindo o brilho dourado das luzes. As mulheres deslizavam com vestidos longos, de cetim e renda. Os homens sorriam com taças de espumante em mãos, comentando negócios e política com tom entediado.
Helena entrou com o coração acelerado.
O vestido azul que usava era justo no busto, com uma saia ampla e delicada. Ela sabia — ou deveria saber — como se comportar. Mas agora, com sua consciência real guiando cada passo, tudo parecia estranho. Ela sorria menos. Observava mais. E principalmente: procurava por ele.
Arthur logo a encontrou. Veio em sua direção com o mesmo sorriso encantador que no passado a fizera suspirar. Mas agora, ao encará-lo, Helena não sentiu nada além de repulsa.
— Minha querida — ele disse, pegando sua mão e beijando levemente o dorso. — Está maravilhosa esta noite. Todos os olhos estão em você.
— Talvez seja o vestido — respondeu, retirando a mão com elegância, mas firmeza.
Arthur riu, achando graça da ousadia que não esperava.
— O anúncio será feito após a valsa — disse ele. — Está pronta?
Helena hesitou por um segundo, mas respondeu:
— Sim. Estou pronta para o que vier.
Mas no fundo… sabia que ele não estava.
Foi durante a terceira valsa que ela o viu.
Encostado em uma das colunas laterais do salão, parcialmente coberto pelas sombras, o general Alexander Monteiro observava tudo com expressão impassível. Usava um uniforme escuro impecável, as condecorações no peito refletindo a luz suave. Era mais jovem do que ela lembrava — olhos de aço, maxilar firme, postura irrepreensível. Havia algo em sua presença que calava qualquer conversa ao redor. Ele não sorria. Não dançava. Apenas observava.
E então, como se sentisse o peso do olhar dela, ele a encarou.
Helena desviou o olhar por um segundo, mas já era tarde. O general vinha em sua direção.
Passos firmes. Postura rígida. Um homem acostumado a comandar. As pessoas abriam espaço ao redor sem que ele precisasse pedir. E mesmo aqueles que tentavam manter as aparências, pareciam ficar mais alertas em sua presença. Ele era temido. Respeitado. E, acima de tudo, mantinha uma distância que ninguém ousava cruzar.
Mas Helena não era mais Elisa.
Quando ele parou diante dela, o coração dela já martelava forte no peito — não de paixão repentina, mas da sensação de estar diante de um momento crucial. Um desvio real na linha de uma história que conhecia tão bem.
— Senhorita Elisa Vasconcellos — disse ele, com a voz grave e a pronúncia precisa, como quem mede cada palavra antes de oferecê-la ao mundo. — Não pensei que fosse reconhecê-la com tanta facilidade. Está... diferente.
— Talvez porque eu esteja — ela respondeu, surpresa consigo mesma pela coragem. — Ou talvez o senhor esteja prestando mais atenção do que antes.
Os olhos dele brilharam por um instante. Não era um sorriso, mas algo que se aproximava disso. Um sutil levantar de sobrancelha, uma quebra quase imperceptível na muralha de gelo que parecia vesti-lo.
— Tocada pela guerra ou pela vaidade, senhorita?
— Tocada pela lucidez — ela respondeu, antes de pensar.
Ele a observou mais um pouco. Não com o olhar de um homem desejando uma mulher, mas como um general analisando o terreno. E, ainda assim, havia algo quase protetor naquela presença rígida — uma espécie de respeito silencioso, que não se conquistava com sorrisos ou palavras doces.
— Devo dizer — ele murmurou — que sua resposta me intriga. Mas não acredito que foi até aqui apenas para conversar com um velho soldado.
— Não vim procurá-lo, general. Mas talvez o senhor seja exatamente quem eu precisava encontrar.
A música ao fundo mudou para uma melodia mais lenta. O salão dançava ao ritmo de valsas perfeitas. Sorrisos falsos, mãos entrelaçadas, passos programados. Tudo era aparência.
— Uma valsa — ela sugeriu. — Ou o senhor ainda não reaprendeu a dançar?
Ele hesitou. A resposta que esperava era um não. Um “não danço” seco e direto, como no livro. Mas ele não disse. Em vez disso, estendeu a mão.
— Uma dança, então.
Helena colocou sua mão sobre a dele, e o toque foi um choque silencioso. Não de desejo imediato, mas da intensidade de algo que parecia à beira de nascer.
Eles caminharam até o centro do salão. Ela podia sentir os olhares — os comentários sussurrados. A noiva de Arthur Vasconcellos dançando com o general solitário? Era um escândalo em potencial. Mas ela não se importava. Ela sabia quem Arthur era. E agora, queria mais do que um papel repetido.
Os primeiros passos da dança foram cuidadosos, contidos. Ele a guiava com firmeza, mas sem brutalidade. E a cada volta, a cada giro, ela o encarava — como quem desafia e convida ao mesmo tempo.
— Por que está me olhando assim? — ele perguntou, sem disfarçar o incômodo.
— Porque estou tentando entender quem o senhor é… sem o filtro das páginas.
Ele a fitou com olhos semicerrados.
— Páginas?
Ela sorriu, desconversando:
— Esqueça. Apenas... continue dançando. É a primeira vez que essa cena acontece, sabia?
Ele franziu o cenho.
— Que cena?
— Esta. Você e eu. No centro do salão. Em outra versão da minha vida, ela nunca aconteceu.
Alexander não respondeu de imediato. Apenas dançou. A música, o calor dos corpos em movimento, os olhares, os segredos — tudo parecia suspenso. E então, como se algo dentro dele tivesse cedido por um momento, ele disse:
— Há coisas que também não aconteceram como eu imaginei. Algumas... que me decepcionaram. Outras... que ainda podem surpreender.
Helena sentiu um arrepio percorrer sua espinha.
A música terminou. Eles se afastaram lentamente, em silêncio, mas o fio invisível entre eles permanecia. Um fio tenso, carregado de possibilidades.
Arthur reapareceu logo depois, o sorriso impecável no rosto, os olhos escondendo uma sombra de irritação.
— Que honra ver o senhor dançando, general — disse ele, com falsa cortesia. — Não é de seu costume.
— A senhorita Vasconcellos é... surpreendente — foi tudo o que Alexander respondeu antes de se afastar, deixando os dois sozinhos.
Arthur se inclinou, sussurrando com doçura forçada:
— Espero que essa dança tenha sido apenas uma gentileza. A noite é nossa, meu amor. E o anúncio também.
Helena ergueu os olhos e o encarou com firmeza.
— A noite pode ser sua, Arthur. Mas meu destino... já não é mais.
Ela se virou e caminhou para longe antes que ele pudesse responder, deixando-o sozinho, ainda sorrindo para as aparências, mas com o orgulho ferido.
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Atualizado até capítulo 45
Comments
New Biana
que história linda
2025-07-27
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