Capítulo 5 – A vila das cinzas

O caminho até a vila foi mais longo do que esperavam. Não pelos quilômetros percorridos, mas pelo peso do passado que se arrastava junto com cada passo. A floresta parecia se fechar atrás deles, como se o tempo estivesse costurando as trilhas de volta para que ninguém mais as seguisse.

Rayhna caminhava na frente. O corpo ereto, mas os olhos oscilando entre vermelho e caramelo — como se lutassem entre a calma e a lembrança da dor. Lucien vinha logo atrás, em silêncio. Ele sabia que não havia desculpas possíveis. A traição estava escrita em cada pedra da vila para onde voltavam.

Ao final do quarto dia, avistaram os contornos das ruínas. As casas de madeira não resistiram ao tempo, mas a igreja, ainda que queimada, permanecia de pé. Era ali que tudo havia acontecido. Era ali que a primeira chama da destruição fora acesa — não pela Deusa, mas pelos homens.

Rayhna parou diante da antiga entrada. Os portões estavam caídos. As flores secas no chão pareciam sussurrar nomes esquecidos.

— Aqui, onde fui arrastada — disse ela, com a voz rouca. — Onde você me deu aos inquisidores como se eu fosse um fardo. Como se o que eu era fosse impuro.

Lucien não respondeu. Seus olhos estavam baixos. Ele lembrava.

— Não há perdão aqui — completou Rayhna. — E nem precisa haver.

O ar estava denso. Quando entraram na igreja, o cheiro de cinzas ainda impregnava as paredes. Mas havia algo mais. Algo que não era de agora. Um calor sutil que vinha do subsolo. Rayhna guiou-se por ele, até alcançar o altar. Ajoelhou-se. Passou a mão sobre as tábuas queimadas. E então sussurrou palavras em uma língua esquecida.

O chão tremeu. Uma passagem foi aberta, revelando uma escada estreita. Lá embaixo, uma luz alaranjada pulsava como um coração cansado.

— O selo está aqui — murmurou.

Lucien desceu atrás dela, mantendo o relicário preso ao peito. As paredes do subsolo estavam cobertas por inscrições. Muitas feitas com sangue seco. Outras com carvão. Outras... pareciam entalhadas com unhas humanas. Uma sala circular aguardava no final. No centro, sobre uma base de ossos, repousava um objeto envolto em véus escuros.

Rayhna aproximou-se devagar.

— Coração — disse. — O segundo selo.

Quando tocou o véu, uma onda de calor atravessou a sala. As velas se acenderam sozinhas. Lucien sentiu o relicário vibrar, em resposta. Era como se os selos conversassem entre si.

— Se os unirmos...

— Não devemos — interrompeu Rayhna. — Eles foram separados por um motivo. Reunir os três é abrir completamente a visão da Deusa.

Lucien recuou, mas uma dúvida o atravessou.

— E se ela já estiver vendo? Aos poucos?

Rayhna hesitou. A imagem do espelho sangrando voltou à sua mente. As versões de si mesma. As versões de Lucien. As possibilidades distorcidas.

— Então precisamos proteger esse selo — disse ela. — E não podemos levá-lo conosco.

— Vai deixá-lo aqui?

— Vou escondê-lo em um lugar onde nem mesmo eu possa alcançar.

Ela desenhou um símbolo no chão. O selo do coração começou a levitar, girando lentamente. Uma corrente de sombras o envolveu, como mãos cuidadosas que o carregaram até o teto da sala. Lá, uma fenda se abriu na pedra. O selo foi absorvido. E a rachadura se fechou.

Silêncio.

Mas não por muito tempo.

Um estrondo ecoou pelas paredes. E então, a voz.

— O que vocês tiraram de mim, eu vou tomar de volta.

Era a Deusa. Não com fúria, mas com fome. O som era quase um gemido. Como se sentir o segundo selo tivesse despertado sua dor.

Lucien caiu de joelhos. O relicário ardia. Uma fumaça prateada saía dele.

— Ela está tentando atravessar.

Rayhna agarrou Lucien pelos ombros.

— Foca em mim. Foca no presente. Não deixa ela ver demais.

Ele respirou fundo, tentando conter as imagens que vinham em sua mente. Os gêmeos. O rosto deles. O cheiro da pele deles. A Deusa procurava. E cada fração de pensamento era uma pista.

Rayhna começou a cantar. Uma melodia antiga. Uma canção de selamento. As paredes tremeram. As chamas diminuíram. O relicário se acalmou.

Silêncio outra vez.

Lucien olhou para ela.

— E se não conseguirmos manter os três separados?

Rayhna desviou o olhar.

— Então que ao menos um de nós esteja pronto para morrer com eles.

A vila das cinzas ficou para trás. Mas agora, mais do que nunca, o tempo corria contra eles.

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