Capítulo 4 – Quando os espelhos sangram

A noite havia mergulhado o templo em sombras espessas. Rayhna permanecia imóvel diante do altar, os olhos semicerrados, como se escutasse algo que vinha do fundo da terra. Lucien dormia em um sono inquieto, recostado nas escadas de pedra que levavam à cripta. Nyx havia partido horas antes, mas suas palavras ainda reverberavam como lâminas finas no ar.

“Você precisa estar disposta a sangrar por eles.”

Mas e se o sangue que precisasse ser derramado não fosse o dela?

Rayhna abriu os olhos lentamente. Estavam vermelhos como vinho derramado. Não era apenas fúria — era conexão. A fome da Deusa começava a ressoar através dela. Seus sentidos estavam mais aguçados. Ela sentia as rachaduras nas pedras sob seus pés, ouvia os sussurros da umidade escorrendo pelas paredes. E, principalmente, sentia os olhos.

Os que observavam do outro lado do véu.

Levantou-se devagar, deslizando os dedos pelo pedestal do altar. Um espelho antigo estava ali. Rachado. Manchado por séculos de esquecimento. Mas agora, ele brilhava. Não com luz. Com movimento.

Reflexos que não correspondiam ao presente.

Rayhna viu a si mesma — não como era agora, mas como estivera séculos atrás. Vestida com trajes do século XVII, a pele ainda pálida, mas os olhos... caramelo. Eram seus olhos de antes. Antes da queda. Antes do pacto. Antes da dor. Atrás dela, Lucien — o mesmo de sempre, mas mais jovem, mais esperançoso.

O reflexo sorriu para ela. Mas Rayhna não sorriu de volta.

Porque o reflexo não a imitava.

— Lucien — chamou, sua voz baixa, mas afiada como uma adaga.

Ele despertou num salto. O suor escorria por sua testa. O relicário que mantinha próximo do corpo havia começado a vibrar novamente.

— O que foi? — perguntou, ainda sem fôlego.

Ela apontou para o espelho.

— Ele está ativo.

Lucien se aproximou, e seu rosto empalideceu. A imagem refletida era diferente da que via ao lado.

No espelho, Rayhna o olhava com ternura. No presente, ela estava imóvel.

— Isso é... isso sou eu? — perguntou ele.

Rayhna assentiu.

— Mas não é agora. É uma versão de nós que poderia ter existido. Ou que ainda pode.

Lucien estendeu a mão, tocando o espelho. O vidro estalou sob seu dedo, como se vivo. E então, sangue. Uma gota escorreu da superfície e caiu no chão, ardendo como fogo.

— Os espelhos estão sangrando — sussurrou Rayhna. — As versões se cruzam. E quando isso acontece... a realidade se rompe.

Lucien recuou.

— Isso foi um aviso.

Ela concordou.

— Ou uma promessa.

Ao fundo, uma nova rachadura surgiu no espelho. E então, outra imagem: Nyx, diante de um lago negro, cercada por símbolos flutuantes. Seus olhos estavam fechados, mas seus lábios se moviam em encantamento. Atrás dela, uma figura encapuzada com olhos brancos brilhando no escuro.

A Deusa estava próxima.

— Precisamos encontrar o próximo selo — disse Rayhna. — Antes que ela chegue primeiro.

Lucien caminhava de um lado para o outro.

— Nyx disse que um está em um lugar onde ninguém quer voltar. Você sabe onde é, não sabe?

Rayhna hesitou.

— Sim. É o lugar onde fui traída pela primeira vez. Onde você disse que me amava... e depois me entregou.

Lucien travou a respiração. Lembrava da vila. Da multidão. Do cheiro de madeira queimada. Lembrava dos olhos de Rayhna quando ela foi arrastada — olhos que não eram de medo, mas de desprezo.

— Lá... ainda existe?

— Existe em ruínas. Mas os símbolos permanecem. E se o selo está lá, ela também pode estar.

Lucien ergueu o relicário.

— Isso nos levará até lá?

Rayhna negou com a cabeça.

— Isso apenas nos condenará se cair em mãos erradas.

Na manhã seguinte, partiram. A floresta parecia observá-los em silêncio absoluto. Nenhum animal, nenhum vento, nenhum som. Apenas a certeza de que a cada passo, os espelhos do tempo se curvavam um pouco mais.

Rayhna mantinha os olhos firmes à frente. Mas em sua mente, cada reflexo era uma ameaça. Cada possibilidade distorcida, um risco para os filhos que escondia. Se a Deusa visse o que foi criado... ela não hesitaria.

E o espelho... já havia sangrado demais para ser ignorado.

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