O relicário estava guardado, mas sua presença ainda latejava dentro do templo como uma ferida exposta. Rayhna sentia o peso dele em sua mente. Não bastava escondê-lo — era como se o próprio objeto a perseguisse, costurado aos seus sentidos. À noite, sonhava com olhos cravados nas paredes, olhos que choravam sombra. E fome. Sempre fome.
Ela conhecia aquela fome.
Não era apenas o desejo por sangue.
Era algo mais primitivo. Algo que se contorcia sob a pele, que sussurrava entre as costelas, que sintonizava com os pulsos alheios como se pedisse permissão para devorar. E não era só dela. Lucien também começava a senti-la.
Desde que tocou o relicário, ele não conseguia mais dormir. E quando conseguia, acordava com as mãos tremendo, os olhos ardendo, os lábios feridos por mordê-los demais. Como se houvesse uma presença dentro dele querendo sair. Quase como... uma sede sem fim. Mas nem mesmo o sangue aliviava. Pelo contrário: aumentava.
— Há algo me corroendo por dentro — confessou ele. — Mas não consigo dizer se é fome, culpa ou...
— Ou a visão dela — completou Rayhna.
Estavam sentados na parte mais funda do templo, um lugar que só existia para os que sabiam como abrir os selos de pedra. Abaixo do altar central havia uma cripta esculpida com símbolos da primeira linhagem. Aqueles que haviam dado origem às três. Ali, o ar era mais denso. Quase sólido.
Rayhna observava Lucien como se o estudasse. Como se tentasse enxergar o que estava tentando despertar dentro dele.
— O que você viu quando tocou o relicário? O que mais viu além de Nyx e o altar?
Lucien fechou os olhos. Era sempre doloroso lembrar.
— Vi uma mulher de branco. Cega, mas com olhos desenhados em cada parte do corpo. Nas mãos. No pescoço. Nas costas. Ela caminhava sobre uma superfície de espelhos. E cada reflexo mostrava uma versão diferente de nós. Em uma delas... você estava com nossos filhos. Em outra, você me matava. Em outra ainda, eu te oferecia aos olhos.
Rayhna sentiu um arrepio. A Deusa estava se revelando, ainda que fragmentada. Aquela fome não era só deles. Era dela. Era um eco da ausência. Da separação. Quando os três selos foram criados, parte da essência da Deusa foi arrancada — e a fome permaneceu onde não havia mais voz.
Nyx surgiu novamente. Sempre entre sombras. Sempre no momento certo — ou errado.
— Estão sentindo o que ela quer que sintam. O vazio. A falta. A necessidade.
Lucien a encarou.
— Mas por quê? Por que agora?
Nyx sorriu, enigmática.
— Porque vocês a acordaram. E ela quer lembrar quem é. E para lembrar... precisa devorar o que vocês são.
Rayhna se levantou.
— E se nós a enfrentarmos? E se a impedirmos de chegar até os outros selos?
Nyx se aproximou dela. Seus olhos estavam mais escuros que o normal.
— Rayhna, você já sabe que não é possível vencer uma força esquecida. Só se pode barganhar com ela. E, às vezes, nem isso.
Lucien se levantou, a respiração acelerada.
— E se essa fome alcançar os nossos filhos? — sussurrou. — E se ela sentir a presença deles?
Nyx não respondeu. O silêncio dela foi resposta suficiente.
Rayhna se virou para uma das paredes da cripta. Tocou um dos símbolos em espiral, ativando uma memória ancestral. Um holograma de sangue surgiu no ar, mostrando uma mulher encapuzada com os olhos costurados.
— Isso... — sussurrou Rayhna. — Isso é o que ela era quando foi selada. Privada da visão, para que não reconhecesse seus filhos.
Lucien se aproximou, tocando a imagem.
— Ela teve filhos?
— Todos tivemos — respondeu Nyx, quase com pesar. — Só que alguns sangraram até não restar mais nada. Outros foram escondidos. E um... foi dividido em dois.
O casal de gêmeos.
Rayhna sentiu o relicário pulsar, mesmo trancado em uma das camadas mágicas do templo. Sua ligação com a Deusa estava crescendo. Aquela fome... não era dela. Mas também não era totalmente alheia.
— Eu não vou permitir — murmurou. — Eles não vão sentir essa dor. Não vão carregar a nossa sede.
Nyx a olhou, fria.
— Então você precisa estar disposta a sangrar por eles antes que o tempo acabe.
A fome crescia. A sede se espalhava.
E a Deusa, ainda cega, já começava a farejar seus descendentes.
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Atualizado até capítulo 28
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