O ar frio da madrugada de Istambul chicoteava o rosto de Anastacia, trazendo consigo o cheiro úmido do asfalto após uma garoa recente, mas o verdadeiro gelo que sentia era interno, um arrepio que não vinha da temperatura, mas da incerteza que a consumia. O cartão preto, com o nome "Joe" gravado em prata discreta, queimava em sua palma como um braseiro. Não era um calor reconfortante, mas uma brasa ardente de incerteza e presságio, uma promessa silenciosa de algo perigoso e irreversível. A balada, que poucos minutos antes parecia um convite efervescente à diversão e ao esquecimento, agora ecoava em sua mente como uma câmara de tortura sonora, amplificando o turbilhão de pensamentos e a cacofonia de suas próprias dúvidas. Quem era aquele homem, afinal? E, mais perturbador, por que ela não conseguia, de forma alguma, tirá-lo da cabeça?
Sua assertividade habitual, aquela armadura de sarcasmo afiado e inteligência rápida que ela tão bem manejava, parecia ter encontrado uma barreira intransponível na figura de Joe. Ele não se intimidou. Pelo contrário, sua reação foi de um interesse quase calculista, como se a resistência dela fosse um tempero a mais, um desafio bem-vindo para uma mente que ansiava por ser entretida. "Gosto da sua ousadia", a frase dele reverberava em sua memória, a voz rouca e sedosa como a mais perigosa das melodias, e a eletricidade daquele breve contato com sua mão ainda persistia. Um calafrio, paradoxalmente excitante, percorreu sua espinha. Era uma sensação que ela raramente experimentava: a de estar diante de algo completamente desconhecido e, ao mesmo tempo, irresistivelmente atraente, como um abismo que prometia segredos profundos.
Anastacia dobrou a esquina, a intenção consciente de ir direto para casa, de mergulhar sob os cobertores e esquecer o incidente, de varrer a imagem dele de sua mente. Mas seus pés pareciam ter vida própria, arrastando-a para longe da boate, sim, mas não para o esquecimento. Seus pensamentos eram um emaranhado de contradições, uma batalha campal entre a razão e a emoção. Joe era perigoso, isso era inegável, uma verdade que gritava em seu instinto mais primitivo. A aura de poder sombrio que o envolvia era quase tangível, uma promessa silenciosa de problemas, de complicações que ela nunca buscou. Seus olhos, que pareciam ter visto a alma dela em um único piscar, continham uma profundidade que Anastacia não conseguia decifrar, mas que a prendiam, a chamavam, como um canto de sereia. Ela se pegou, compulsivamente, analisando cada detalhe do encontro: o toque breve em sua mão que deixou uma marca fantasma, a forma como ele se dissolveu na multidão como um espectro, a confiança quase arrogante com que ele a abordou, como se ela fosse um objeto a ser examinado. Era como se ele tivesse se materializado do próprio ar, e evaporado da mesma forma, deixando apenas uma pergunta gritante em seu rastro: por quê?
Ela parou abruptamente em frente a uma vitrine iluminada de uma loja de roupas que já estava fechada, mas seus olhos não viam os manequins inanimados e as peças de seda e linho. Viam, em seu lugar, os olhos intensos de Joe, refletidos no vidro escuro. Ela sabia, com uma clareza dolorosa, que deveria jogar o cartão fora, esmagá-lo em sua mão e jogá-lo em uma lixeira qualquer, esquecer o homem e a estranha conexão que ele havia plantado em sua mente. Era a atitude racional, a atitude que sua mente lógica e prática ditava com veemência. No entanto, sua mão se recusava a soltar o pequeno pedaço de papel. Pelo contrário, ela o apertava com força, os cantos quase perfurando sua pele. A fascinação, como uma névoa densa e pegajosa, começava a envolver seus sentidos, turvando seu julgamento, sussurrando promessas perigosas. Era uma tentação diferente de tudo que ela já havia experimentado, uma curiosidade mórbida que a puxava para um abismo que, instintivamente, ela sabia ser sem retorno, um poço de escuridão que parecia irresistível.
"O que diabos está acontecendo comigo?", ela murmurou para o reflexo trêmulo na vitrine, sua voz quase inaudível, um sussurro assustado na vastidão da noite. Ela nunca havia sido tão facilmente perturbada por um encontro casual. Homens haviam se aproximado dela antes, é claro, mas nenhum com aquela intensidade predatória, com aquele ar de quem detinha todos os segredos do universo e não tinha pressa em revelá-los. A presença de Joe havia deixado uma marca, uma cicatriz invisível e profunda em sua percepção da realidade, um rasgo na cortina de sua zona de conforto. Ele havia rompido a bolha de controle que ela, com tanto esforço, mantinha sobre sua própria vida.
A imagem daquele sorriso enigmático, que nunca chegava aos olhos, voltou a assombrá-la, flutuando em sua visão como um fantasma. Não era um sorriso de felicidade, nem de carinho, muito menos de inocência, mas de um conhecimento profundo, quase predatório. Ele a via de uma forma que ninguém mais havia visto, não apenas a superfície de sua beleza ou inteligência, mas algo mais, algo bruto e verdadeiro que ela escondia. E essa percepção, embora assustadora em sua nudez, era também estranhamente viciante, uma droga que prometia revelações. Era como se ele tivesse olhado para dentro dela e reconhecido algo selvagem, algo indomável, algo que ela guardava a sete chaves de todos, inclusive de si mesma.
Um táxi amarelo passou ruidosamente, as luzes brilhando no asfalto molhado e refletindo o nome "Istambul" na lateral. Anastacia ergueu a mão automaticamente, um gesto quase inconsciente de desespero por sair dali. Precisava sair daquele ambiente urbano que parecia impregnado da presença dele, daquele ar pesado que se recusava a se dissipar. Mas mesmo dentro do táxi, enquanto as luzes da cidade passavam rapidamente pela janela, formando borrões coloridos, a figura de Joe persistia em sua mente, tão vívida quanto se ele estivesse sentado ao seu lado. Ela olhou para o cartão em sua mão novamente, as letras prateadas brilhando palidamente sob a luz da cabine. Era um convite para o desconhecido, um portal para um mundo que ela sabia ser perigoso, um submundo que ela deveria evitar a todo custo. No entanto, agora, por alguma razão inexplicável, a atraía com uma força gravitacional esmagadora.
Ela mordeu o lábio inferior, o gosto ferroso do sangue misturado ao sabor persistente do álcool em sua boca, uma ironia para a sobriedade que sua mente exigia. Deveria ligar para aquele número? A ideia era absurda, beirava a loucura. Seu bom senso gritava para ela se afastar. Mas e se não ligasse? E se perdesse a chance de desvendar aquele mistério que a consumia, que a roía por dentro como um parasita? A adrenalina do encontro ainda corria em suas veias, uma corrente quente e perigosa, e a promessa de perigo que Joe representava era, para uma parte dela, um chamado irresistível, um canto de sereia para o qual ela se sentia arrastada. A fascinação era perigosa, sim, mas também era inebriante, um veneno doce. Ela se pegou imaginando, com uma clareza perturbadora, o que aconteceria se ela cedesse àquele impulso, se desse o próximo passo. Uma guerra interna se formava em sua alma, a razão contra a curiosidade insaciável, o instinto de autopreservação contra a atração fatal pelo abismo. E, pela primeira vez em muito tempo, Anastacia não tinha certeza de qual lado venceria. A noite em Istambul parecia estar prestes a mudar seu destino para sempre.
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Atualizado até capítulo 100
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