Capítulo 4 – “As Cartas Que Ela Me Deixou”
O apartamento estava do mesmo jeito que deixei.
Meio escuro. Silencioso.
Com o cheiro familiar de livros antigos, sabão de coco e ausência.
Renji me deixou na porta e esperou eu entrar antes de ir embora.
Não disse nada. Só assentiu. Como quem entende que certos caminhos precisam ser percorridos sozinho.
Fechei a porta atrás de mim e fiquei ali, parado.
O coração batendo devagar, como se estivesse redescobrindo a ideia de lar.
Mas tudo ali gritava pela presença da minha mãe.
As plantas secas no canto da sala.
O cobertor azul dobrado no sofá.
A caneca de chá esquecida na cozinha.
As receitas grudadas com ímã na geladeira.
Ela havia partido — mas cada canto daquela casa ainda sussurrava seu nome.
Caminhei devagar até o quarto dela.
O cheiro dela ainda estava ali.
Jasmim.
E saudade.
Abri o guarda-roupa, como quem abre um ferimento.
E lá, entre as roupas cuidadosamente dobradas, encontrei uma caixa de madeira.
Pequena. Simples. Com meu nome gravado na tampa com marcador preto.
“Para Haru. Abrir quando estiver pronto.”
As mãos tremiam.
O coração também.
Mas abri.
Dentro, havia cartas.
Várias.
Cada uma com uma data diferente, marcada à caneta:
“Quando você entrar no ensino médio.”
“Quando se apaixonar pela primeira vez.”
“Quando tiver o coração partido.”
“Quando perder alguém que ama.”
“Quando achar que não aguenta mais.”
“Quando eu não estiver mais aqui.”
Engoli em seco.
Não sabia por onde começar.
Mas a última carta me chamava.
A que dizia:
“Quando eu não estiver mais aqui.”
Abri com cuidado. O papel estava macio, levemente amarelado, como se já soubesse o peso que carregava.
"Meu querido Haru,
Se você está lendo essa carta, então eu já não estou mais aí para te abraçar.
Mas saiba que meu amor está. Sempre esteve.
Desde o momento em que te vi pela primeira vez, com os olhos fechados e as mãos miúdas tentando agarrar o mundo.
Eu soube que minha missão era te proteger.
Sei que não fui perfeita.
Sei que escondi coisas de você — como a verdade sobre seu pai.
Fiz isso porque achei que te poupar da dor era a melhor forma de amor.
Talvez eu tenha errado.
Mas tudo que fiz… foi por amor.
Se você estiver sofrendo agora — e conhecendo você, meu menino sensível, deve estar —, respire fundo.
A dor parece que vai durar pra sempre, mas ela é só uma chuva.
E você já aprendeu a sobreviver à chuva, não é?
Eu te vejo, Haru.
Te vejo mesmo não estando aí.
E estou tão orgulhosa de você.
Tão orgulhosa pela sua coragem de amar.
De enfrentar o mundo.
De ser quem é.
Nunca deixe que ninguém diga que você não é suficiente.
Você é mais do que suficiente.
Com todo meu amor,
Mamãe."
As lágrimas vieram sem que eu pudesse impedir.
Grossas. Salgadas. Quentes.
Como se limpassem por dentro tudo que estava desmoronando há meses.
Abracei a carta contra o peito.
E ali, no chão do quarto da minha mãe, chorei como nunca chorei por ninguém.
Nem por Luan.
Nem por mim.
Mas por ela.
Pela ausência. Pela falta.
Fiquei ali por horas.
Até a noite cair.
Até o corpo cansar.
Até a dor dar lugar ao silêncio.
Nos dias seguintes, abri uma carta por vez.
Com cuidado.
Com respeito.
Como se cada uma fosse um pedaço dela que voltou só pra me segurar mais uma vez.
“Quando você se apaixonar pela primeira vez.”
"Você vai sentir o coração bater diferente. Vai sorrir no meio do nada. Vai ter medo e coragem ao mesmo tempo.
E mesmo que esse amor não dure, ele vai te ensinar a amar.
E isso já vale tudo."
Pensei em Luan.
No dia do beijo no terraço.
No sorriso torto dele.
Na confusão nos olhos.
Na dor que veio depois.
“Quando tiver o coração partido.”
"Vai doer, meu filho. Vai parecer que o mundo está te engolindo. Mas essa dor… vai moldar quem você é.
Não feche seu coração.
Só aprenda a escolher melhor quem entra nele."
Pensei em Elisa.
Em como ela tentou me alertar.
Em como eu a ignorei.
Em como eu insisti em ficar, mesmo sangrando.
“Quando achar que não aguenta mais.”
"Aguenta só mais um dia.
Um de cada vez.
E se não conseguir… escreva.
Fale.
Chore.
Mas não desista.
Porque você é feito de coisas que o mundo precisa ver."
E então, a carta que me destruiu e reconstruiu ao mesmo tempo:
“Quando descobrir a verdade sobre seu pai.”
Eu ainda não havia descoberto.
Mas aquela carta me fez entender que havia algo escondido.
E que a versão do acidente… talvez fosse só isso: uma versão.
*"Eu menti pra te proteger.
Seu pai não morreu.
Ele… nos deixou.
Foi embora.
Escolheu outro caminho.
E por muito tempo, achei que isso era uma falha minha.
Mas hoje sei que quem abandona um filho é que é falho.
Você não precisa dele pra ser inteiro.
Você é inteiro por si só."*
Fechei os olhos.
Ela tinha guardado tudo isso.
Cartas.
Palavras.
Amor.
Ela sabia que eu enfrentaria tudo isso um dia.
E quis estar presente… mesmo não estando.
Nos dias seguintes, algo em mim mudou.
Ainda amava Luan.
Mas pela primeira vez, percebi o quanto eu havia me apagado por ele.
Percebi que amar não é esquecer de si mesmo.
Pensei em Renji.
No cuidado sem exigência.
Na presença sem pressão.
Na gentileza sem segundas intenções.
E algo ali… floresceu.
Não era amor.
Ainda não.
Mas era respeito.
Curiosidade.
Admiração.
E isso, talvez, fosse o solo certo para o amor crescer um dia.
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Atualizado até capítulo 22
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