Entre Gotas de Amor e Cicatrizes
Capítulo 1 – O Menino Que Alimentava Gatos
Me chamo Haru. E, se eu tivesse que definir minha vida com uma única palavra, seria “quase”.
Quase feliz.
Quase forte.
Quase amado.
Mas naquele dia, enquanto eu me abaixava na calçada molhada para alimentar um gatinho magro e assustado, eu não imaginava que alguém estava me observando. E que a vida que eu conhecia estava prestes a se partir ao meio — e também se iluminar.
Era uma tarde cinza de segunda-feira. O tipo de dia que já nasce cansado. Eu voltava da escola com a mochila pesada e o uniforme amassado, quando o vi: um filhote branco, com as patas sujas de barro e os olhos fundos de fome. Ele miava baixinho, como se pedir ajuda já fosse vergonhoso.
Me ajoelhei sem pensar. Abri meu lanche — um pedaço de pão com ovo que minha mãe havia feito de manhã — e parti ao meio. Entreguei a parte maior ao pequeno felino, que hesitou, mas logo se aproximou, faminto.
— Ei… devagar — sussurrei, como se o gato pudesse me entender. — Você está seguro agora.
Foi quando senti um olhar queimar minhas costas. Me virei, devagar, e lá estava ele: Luan.
Cabelo castanho escuro, camisa meio aberta, fones pendurados no pescoço e aquela expressão entre curiosidade e deboche.
— Você fala com gatos, agora?
O tom era provocador, mas havia algo nos olhos dele que me paralisou. Como se ele tivesse se confundido com a própria fala. Como se estivesse… encantado.
— Não — respondi. — Só com pessoas mal-educadas.
Ele arqueou uma sobrancelha e deu um meio sorriso, meio cínico, meio divertido.
— Interessante. Mal-educado e curioso. Um combo irresistível.
Me levantei, limpando os joelhos com as mãos. O gato já lambia o que restava do pão.
— Você sempre observa os outros pelas costas? — perguntei, tentando manter a firmeza na voz, mas o coração estava acelerado demais.
Ele me encarou.
— Só quando me chamam atenção.
Fiquei em silêncio. Não sabia como responder àquilo.
Ele se virou, pronto para ir embora, mas antes jogou por cima do ombro:
— Esse gato teve sorte. Tomara que você tenha a mesma.
A partir daquele dia, Luan começou a implicar comigo na escola. Nada diretamente cruel — apenas o tipo de presença que você sente mesmo quando não vê. O olhar prolongado no corredor. Os comentários velados nas aulas. As perguntas “inocentes” que me deixavam corado na frente de todos.
Mas por trás de toda aquela encenação, eu via algo. Um desconforto. Uma hesitação. Como se ele estivesse travando uma guerra entre quem é e quem fingia ser.
— Aquele Luan tá olhando pra você de novo — dizia minha amiga Elisa, uma das poucas que sabiam que eu era gay. — Sério, Haru, esse menino te olha como se você fosse… uma pergunta sem resposta.
— Ou uma ameaça — respondi.
Ela riu.
— Ou os dois.
Luan era popular. Do tipo que todos queriam por perto, mesmo sem saber por quê. Ele jogava futebol, dizia o que queria sem medo, e sempre conseguia rir até das piores situações. Mas comigo, era diferente. O riso sempre vinha tenso. O olhar, sempre prolongado demais.
No fundo, eu sabia.
Luan escondia algo. E esse algo tinha a ver comigo.
Minha mãe, Kátia, era meu refúgio.
Desde pequeno, ela sempre foi meu porto seguro. Era daquelas mulheres que carregam o mundo nas costas, mas ainda têm colo para dar. Fazia três bicos para me manter na escola particular onde eu estudava com bolsa. Cozinhava à noite e estudava à tarde para concursos que nunca passava.
Ela dizia que meu pai tinha morrido quando eu tinha três anos. Um acidente de carro, segundo ela. Nunca entrei em detalhes. Nunca perguntei demais. A dor no olhar dela bastava.
— Você tem um coração bonito, Haru. Nunca deixe que o mundo te endureça — ela dizia, acariciando meu cabelo. — Amar é a coisa mais corajosa que se pode fazer.
Mal sabia ela o quanto eu ainda teria que lutar para continuar amando.
Foi numa tarde qualquer que tudo mudou.
Eu estava na biblioteca, revisando uma redação, quando ele entrou. Sozinho. Olhou ao redor e veio direto até minha mesa.
— Preciso de ajuda com literatura — disse, sem rodeios.
— Você…? Você lê?
— Não. Mas preciso passar na prova. Você é bom com palavras, não é?
Assenti, desconfiado. Ele puxou uma cadeira e se sentou à minha frente.
— Vamos fazer um trato — disse. — Você me ajuda com isso, e eu te ajudo com matemática. Ou com… sei lá, a vida.
Sorri, sem saber o porquê.
— E por que você acha que eu preciso de ajuda com a vida?
— Porque você olha o mundo como se estivesse tentando entender demais.
A partir dali, começamos a nos encontrar na biblioteca. No começo, só para estudar. Mas, com o tempo, as conversas se alongavam, os sorrisos aumentavam, e as pausas entre uma matéria e outra viravam confissões.
— Por que você sempre parece triste? — ele perguntou uma vez, enquanto folheava um livro sem realmente ler.
— Porque eu espero demais. Das pessoas. De mim mesmo.
— Eu também.
Naquela hora, ele não estava mais sorrindo. E pela primeira vez, vi Luan… vulnerável.
O primeiro toque aconteceu num sábado à tarde. Estávamos no terraço da escola, sozinhos, depois de uma simulação de olimpíada. Ríamos de uma piada interna quando nossas mãos se tocaram por acidente.
Mas ele não recuou. Nem eu.
Ficamos em silêncio, os dedos ainda encostados. E então ele me olhou.
— Você me assusta, Haru.
— Por quê?
— Porque com você, eu não consigo mentir.
— Então não minta.
Ele se aproximou. Devagar. Como se cada centímetro fosse um passo fora do mundo que conhecia.
E então, me beijou.
Foi suave. Inseguro. Mas verdadeiro.
Meu primeiro beijo. O dele também.
Nos afastamos, ofegantes, como se o ar tivesse mudado de densidade.
— Isso muda tudo — ele sussurrou.
— Só se você deixar.
Começamos a namorar escondido. Ele dizia que não podia contar para a família. Que não estavam prontos. Que nunca estariam.
Eu aceitei. Porque o amor, no início, é um bicho faminto. Aceita restos, migalhas, sobras — só para sentir que está vivo.
Passávamos horas em lugares abandonados, trocando carícias rápidas e olhares longos. Eu deixava bilhetes nos bolsos da jaqueta dele. Ele me roubava abraços no banheiro do colégio.
Minha mãe percebeu. E um dia, me chamou para conversar.
— É o Luan, não é?
Fiquei paralisado.
— Como você…?
— Mãe sabe. E eu te conheço. Quando você ama, seus olhos brilham como se estivessem contando segredos.
Ela segurou minha mão com firmeza.
— Se ele te fizer sorrir mais do que chorar, então vale a pena. Mas se o contrário acontecer… me promete que não vai se perder por ele?
Prometi.
Mas sabia, no fundo, que já era tarde.
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Estar com Luan era como andar na beirada de um penhasco.
Belo, excitante — e perigoso.
Havia algo nele que me puxava para mais perto, mesmo quando tudo dentro de mim gritava para recuar.
Os primeiros meses foram uma mistura de euforia e culpa.
Trocávamos mensagens escondidos, nos encontrávamos na saída da escola, mentíamos para quase todo mundo.
Mas quando estávamos juntos, sozinhos, o mundo inteiro desaparecia.
— Me promete que nunca vai me deixar? — ele sussurrou uma vez, com a cabeça apoiada no meu peito.
— Eu nunca faria isso.
— Mesmo se eu… te machucar?
Hesitei.
— Luan… por que você me machucaria?
Ele ficou em silêncio por um longo tempo. E então disse:
— Porque às vezes, eu mesmo não sei como te amar direito.
Na hora, não entendi.
Achei que fosse só mais uma insegurança. Uma daquelas frases profundas que adolescentes dizem quando se sentem expostos.
Mas não era.
A primeira briga aconteceu por causa de uma mensagem.
Um colega de sala — Caio — me mandou um áudio perguntando sobre a aula de física. Nada demais.
Mas Luan viu. E seu rosto se transformou.
— Quem é esse? — ele perguntou, seco.
— O Caio. Ele só perguntou sobre a prova…
— E por que está mandando áudio? Às nove da noite?
— Porque ele não entendeu o exercício?
Luan ficou em silêncio por um tempo, os olhos vidrados na tela do celular.
E então, sem aviso, apagou o áudio e bloqueou o número.
— Luan! — me levantei, assustado. — O que você está fazendo?
— Protegendo o que é meu.
Aquilo deveria ter me soado como um alarme.
Mas, ao invés disso, senti o coração bater mais forte.
Como se ser "dele" fosse, de alguma forma, uma medalha.
Ele me abraçou com força, colando sua testa na minha.
— Não quero que ninguém tire você de mim, Haru. Você é tudo que eu tenho de verdadeiro.
E, como sempre, cedi.
Porque amar Luan era isso: abrir mão de pequenos pedaços de mim mesmo, esperando que isso fosse amor também.
Com o tempo, ele começou a controlar mais coisas.
Quais amigos eu podia ver. Que roupas eu devia usar.
Chegava a vasculhar meu celular quando achava que eu estava "estranho".
E eu... deixava.
Deixava porque achava que era cuidado.
Porque crescer num mundo onde o amor é escasso nos ensina a aceitar migalhas como banquetes.
Minha mãe, com seu olhar afiado, percebeu.
— Ele te ama... ou quer te possuir? — perguntou uma noite, enquanto colocava a mesa.
— Mãe…
— Não. Me responde com sinceridade.
Fiquei em silêncio.
— Amor, Haru, é liberdade. Se você está preso, não é amor. É medo disfarçado.
Mas eu não queria ouvir aquilo.
Eu queria acreditar que era só o jeito dele.
Que ele me amava tanto que não sabia como lidar.
E, no fundo, queria ser amado por ele — custasse o que custasse.
A relação com a família de Luan, por outro lado, era como caminhar num campo minado.
A primeira vez que fui até sua casa, o clima era sufocante.
Seu pai mal me olhou nos olhos.
A mãe sequer sorriu.
— Eles acham que isso é só uma fase — Luan murmurou, depois que saímos. — Que logo eu “viro homem de verdade”.
— E o que você acha?
Ele me olhou como se a pergunta o machucasse.
— Eu só queria que eles me olhassem como olham pro meu irmão. Com orgulho.
Senti uma dor funda no peito.
Por ele. Por mim.
Por todos nós que só queremos ser aceitos como somos.
Certa tarde, após mais uma briga por ciúmes, Luan chegou na minha casa de surpresa.
Minha mãe o atendeu e, antes mesmo que eu descesse, ela o convidou para entrar.
— Senta, Luan — disse ela, firme. — Vamos conversar.
Ele pareceu desconfortável, mas obedeceu.
Eu fiquei parado na escada, escutando tudo.
— Eu vejo como você olha pro meu filho. E sei que você o ama. Mas o amor, Luan, não pode vir com dor. — Ela fez uma pausa. — Se você quer ficar com o Haru, vai ter que aprender a não feri-lo no processo.
Luan engoliu seco.
Fiquei esperando uma resposta agressiva. Um deboche. Mas não.
Ele abaixou a cabeça.
— Eu… não sei como não machucar.
Minha mãe estendeu a mão e tocou no ombro dele.
— Então aprenda. Porque meu filho não nasceu pra ser metade de ninguém. Ele é inteiro. E quem quiser estar com ele, vai ter que ser inteiro também.
Nunca me senti tão protegido e tão exposto ao mesmo tempo.
À noite, Luan me mandou uma mensagem:
"Sua mãe é incrível.
E eu… não sei se te mereço."
Respondi:
"Então aprenda a me merecer."
Mas dentro de mim, algo já começava a se partir.
Apesar de tudo, havia momentos bons.
Beijos longos no terraço. Abraços demorados no final das tardes.
Mensagens bobas antes de dormir.
Foi por causa desses momentos que eu permaneci.
Porque acreditava que, com tempo, amor curava tudo.
Mas o que eu não sabia era que, às vezes, o amor precisa se curar antes de poder curar alguém.
A história de Haru e Luan começava a ser construída sobre alicerces trincados: paixão intensa, inseguranças, ciúmes e medo.
E Haru, mesmo sabendo que estava se machucando, ainda acreditava que podia salvar aquele amor.
Ainda não sabia que, um dia, também precisaria ser salvo.
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Atualizado até capítulo 22
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