Miriã
O refeitório era sempre silencioso.
Limpo demais. Frio demais. Sem janelas. Sem vozes.
A comida vinha medida, contada, quase clínica — como se alimentasse uma máquina, não uma pessoa.
Elbeka comia sozinha. Sempre.
Mas naquele dia… a porta se abriu.
Entrou uma garota loira, magra, de olhos claros. Devia ter no máximo vinte e dois anos.
Vestia um uniforme branco, limpo, novo. Andava com passos hesitantes, como se tivesse medo até do chão.
Ela olhou ao redor e, em vez de se sentar longe, foi até a mesa de Elbeka.
— Posso? — perguntou, baixinho.
Elbeka fez um gesto curto com a cabeça. A garota sentou.
Por alguns segundos, o silêncio voltou. Só o som metálico dos talheres batendo nos pratos. Então a garota falou de novo:
— Meu nome é Miriã.
Elbeka levantou os olhos.
— Cobaia também? — perguntou, seca.
Miriã assentiu.
— Fui convocada pelo governo. Disseram que era um projeto especial. Que era pra ajudar o país…
Elbeka soltou um pequeno riso, sem humor.
— Disseram isso pra mim também.
— Há quanto tempo você está aqui? — Miriã perguntou.
Elbeka pensou. Mas… não sabia.
Quantos dias? Quantos testes? Quantas noites em claro?
— Já perdi a conta.
Miriã baixou os olhos, encolhendo os ombros. Era tímida, mas não era burra. Sabia que algo estava errado ali. Mas, como Elbeka, já estava dentro.
A partir dali, uma amizade começou a nascer.
Simples. Quase silenciosa. Mas real.
Miriã não sabia o que Elbeka era. Não sabia das garras, do veneno, da regeneração absurda.
Mas falava com ela como uma pessoa. Como alguém normal.
E aquilo… mexeu com Elbeka.
Foi a primeira conversa verdadeira em meses.
Alguém para ouvir. Alguém para distrair.
Alguém que a lembrava que, apesar de tudo, ainda havia um pedaço dela ali dentro — enterrado sob músculos, instintos e mutações.
Sangue Frio
Os dias passavam.
Miriã trazia notícias do mundo de fora, ainda respirando — mas com o ar mais pesado.
— Tem uma tensão no ar — ela disse certa manhã, enquanto tomavam café. — Ninguém sabe o que é. Mas dá pra sentir… como um silêncio antes da tempestade.
Elbeka apenas ouviu, os olhos fixos na caneca entre as mãos.
Sabia que o mundo estava prestes a ruir. E ninguém lá fora fazia ideia.
Mas dentro daquele laboratório, uma coisa havia mudado:
Ela não se sentia mais sozinha.
Miriã era diferente. Não tinha o olhar frio dos soldados. Nem a fala calculada dos cientistas. Era leve, espontânea.
Começou a chamá-la de “Beka”.
— Parece nome de irmã mais velha — dizia, sorrindo. — Forte. Brava. Que mata monstros.
Elbeka fingia que achava graça, mas, por dentro, algo aquecia.
A lembrança de ser humana, de ter alguém, mesmo ali dentro.
Os cientistas notaram.
E não gostaram.
Reuniões aconteceram. Câmeras passaram a acompanhar mais de perto as interações entre as duas.
Havia risco. Emoções podiam estabilizar o comportamento da Cobaia 00.
Isso significava perder o controle.
Eles não podiam permitir.
Então tomaram uma decisão: nada de testes com Miriã. Ainda.
Mas sangue?
Sangue podiam tirar.
E assim fizeram.
Coletas discretas, fingindo exames de rotina.
Testaram o vírus nela.
Resultado: catástrofe biológica.
As células de Miriã entravam em colapso.
O vírus atacava como um predador.
Matava as células boas, forçava mutações, criava instabilidade.
O sangue transformado começava a atacar a si mesmo, como se quisesse devorar o corpo inteiro.
A conclusão era sempre a mesma:
Qualquer um que não seja Elbeka… morre.
E isso deixava os cientistas cada vez mais obcecados.
Eles não queriam cura.
Queriam controle.
Queriam entender por que Elbeka era diferente — e usar isso.
E se isso significasse sacrificar Miriã no futuro… que fosse.
Mas Elbeka ainda não sabia disso.
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Atualizado até capítulo 54
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