...Misaka...
Voltar foi fácil.
O turno da manhã estava começando. Enfermeiros distraídos, médicos apressados. A porta lateral do hospital ainda estava com a trava quebrada. Caminhei com o mesmo jaleco, mesmo passo confiante, como se tivesse apenas ido dar uma volta no jardim.
O mundo inteiro se move com base em percepção.
Se parecer que pertenço, ninguém vai perguntar se pertenço.
Cheguei ao corredor do meu andar.
Fingi cansaço. Passei pelas câmeras como uma sombra educada.
Empurrei a porta do quarto lentamente.
Estava escuro.
Silencioso.
Fechei a porta atrás de mim.
Suspirei.
— “Você demorou.” — disse uma voz na penumbra.
Meus olhos foram direto para o canto.
A cadeira ao lado da janela. A luz da rua iluminava o rosto dela com um brilho azulado e frio.
Agente Cruz.
Perfeita postura. Casaco nos ombros. Mãos cruzadas.
Ela me observava como se estivesse tentando montar um quebra-cabeça… que já sabe que está incompleto.
— “Estava esperando uma enfermeira, talvez?” — ela provocou.
— “Só saí pra tomar ar.” — respondi, tranquila, enquanto tirava o jaleco e voltava a deitar como se nada tivesse acontecido.
— “E o jaleco roubado foi por estética ou segurança?”
Sorri.
Ela era boa.
— “Você quer me prender, Cruz?”
— “Não.” — ela se levantou — “Se eu quisesse, você já estaria algemada na maca.”
Andou até a cama, parou ao meu lado.
— “Você fugiu. Rastrearam sua atividade digital no servidor médico. Acesso aos arquivos do FBI. Depois alguém com a sua descrição foi vista no bairro Willowgate. Prédio sem câmeras, entrada lateral. O mesmo endereço de Eric Lang, a testemunha do último caso.”
Ela se inclinou levemente.
— “Quer me contar o que você descobriu?”
Eu a encarei com calma.
Meu sorriso ainda no rosto.
— “Você quer mesmo saber? Ou só tá testando até onde eu vou com isso?”
— “Quero saber se posso confiar em você, Misaka.”
Me sentei devagar. O braço ainda preso ao soro. Mas os olhos firmes.
— “Você não pode.”
Silêncio.
— “Eu sou imprevisível. Quebro regras. Minto. Espio arquivos secretos. Leio pensamentos de testemunhas e saio sem deixar rastro.”
Ela cruzou os braços.
— “E mesmo assim, está cooperando?”
Assenti.
— “Porque, diferente de vocês, eu sei o que ele vai fazer a seguir.”
Cruz ficou em silêncio. Mas os olhos dela diziam tudo:
Interesse. Dúvida. Uma pitada de respeito.
— “Você tá brincando com fogo.” — ela disse.
— “Eu sou o fogo.”
—
Ela respirou fundo. Depois pegou algo do bolso: um crachá.
— “Oficialmente, você não é uma agente. Mas o diretor autorizou sua presença na força-tarefa como ‘consultora especial’. Sob minha supervisão.”
Olhei para o crachá. Peguei. Senti o peso metálico.
— “Isso é confiança?”
— “É necessidade.” — ela respondeu.
—
Ela virou-se para sair, mas antes de alcançar a porta, parou:
— “Uma última pergunta.”
— “Hm?”
— “Você realmente pode... ler mentes?”
Sorri.
— “Não. Mas as pessoas gritam verdades quando tentam esconder mentiras.”
Ela riu. Pela primeira vez.
E saiu.
—
Fiquei sozinha no quarto.
O crachá na mão.
O peso da caçada começando a se encaixar sobre meus ombros.
Israel me ensinou a sobreviver.
Agora vou ensinar ele a fugir.
Só que dessa vez… não vai funcionar.
Deitada na cama, com o lençol cobrindo até a cintura, fiquei encarando o crachá que brilhava sob a luz artificial do hospital.
Frio. Rígido. Oficial.
“Consultora Especial – FBI”
Quase irônico.
Um dia eu estava acorrentada, sendo torturada por um psicopata.
Agora eu estava contratada pra caçá-lo.
Pensei por longos minutos.
Nas vítimas.
No rosto de Eric Lang.
No que ele não teve coragem de dizer.
A tensão finalmente me puxou para o sono. Um daqueles breves e fundos… onde a mente ainda fica ativa, mesmo dormindo.
—
Acordei no dia seguinte com o sol forçando sua entrada pela janela.
Me sentei na cama. O corpo ainda doía, mas a mente estava alerta.
Levantei.
Coloquei o crachá no bolso interno do casaco cinza que estava pendurado no cabide. Calcei os tênis.
E saí andando pelos corredores.
—
Passei por três câmeras.
Em todas, percebi o mesmo movimento:
📹 O eixo da lente girava ligeiramente para cima, depois voltava.
Sempre que eu passava.
Coincidência?
Não quando se repete três vezes.
Andei até o andar da segurança. O hospital usava um sistema central de monitoramento — padrão em instalações com apoio federal.
Esperei o momento certo. A troca de turno. O operador saiu pra tomar café.
Entrei sorrateiramente na sala.
Observei os monitores.
Nada.
Câmeras funcionando normalmente.
Sem sinais de loop.
Sem sobreposição.
Sem falha de gravação.
Mas eu sabia.
Aqueles movimentos não eram técnicos.
Alguém estava olhando direto pra mim.
Ou pior: alguém queria que eu soubesse que estava sendo observada.
—
Voltei pro quarto com esse pensamento latejando na mente.
Abri a porta com cuidado.
Dentro, estavam quatro pessoas.
Postura de profissionais. Olhares atentos. Uma presença militar leve, mas inegável.
Agente Cruz estava de pé, à frente deles.
Ela olhou pra mim com aquele tom firme que eu já começava a conhecer.
— “Bom dia, dorminhoca. Hora de trabalhar.”
Assenti, me aproximando.
Ela apontou para os três atrás dela.
— “Essa é sua equipe. Ou melhor, a nossa equipe.”
Indicou o primeiro homem, alto, braços cruzados, barba por fazer e olhos de quem já viu muita coisa.
— “Agente Leon Takeda. Especialista em perfil criminal e interrogatórios.”
Ele fez um aceno com a cabeça. Poucas palavras, postura sólida.
Depois, virou para o segundo. Mais jovem, com tablet nas mãos, postura reta, olhos afiados como laser.
— “Agente Theo Vasquez. Análise de dados, rastreios digitais e drones.”
Ele sorriu de leve, educado. Profissional, mas curioso com minha presença.
Por fim, apontou para a mulher.
Cabelos presos, olhos escuros, expressão séria, como se estivesse constantemente avaliando o risco de tudo ao redor.
— “Agente Camila Duarte. Armas, combate e tática de invasão.”
Camila apenas me olhou por um segundo. Depois voltou a observar a porta, os cantos. Ela era o tipo que não deixava brechas — e não confiava em ninguém facilmente.
Cruz concluiu:
— “Eles estão aqui porque confiam em mim. E agora… precisam aprender a confiar em você.”
Silêncio.
Eles me observavam.
Eu os observei também.
Rostos. Posturas. Tensão muscular. Microexpressões.
Ninguém ali estava confortável com a situação.
Perfeito.
Desconforto é o melhor estado pra se pensar.
Sorri de leve.
— “Vamos começar, então?”
A sala tática do FBI no hospital ocupava metade do andar superior, transformada temporariamente em quartel-general. Mesas com telas, quadros de vítimas, mapas com alfinetes vermelhos, uma impressora de alta precisão jogando fotos recentes na bandeja.
Cruz abriu espaço pra mim na frente da lousa.
A equipe se espalhou ao redor, atentos.
Peguei o marcador. Escrevi a data da última vítima:
02/03/2030.
Abaixo dela, adicionei as anteriores. Todas espaçadas por um padrão específico.
— “Intervalos de 11 dias, sempre.” — comecei.
Theo Vasquez já abriu o tablet, cruzando com os dados.
— “Confirmado. Até agora ninguém tinha notado esse ciclo.”
— “Israel não deixa rastros óbvios. Ele se diverte deixando padrões invisíveis — pra quem não sabe onde procurar.”
Leon Takeda cruzou os braços.
— “Você parece conhecer ele bem.”
— “Ele me fez. Por dentro e por fora.” — minha voz não tremeu. — “Isso aqui…”
Apontei para os mapas.
— “Não são só crimes. São mensagens.”
Camila, impaciente, se aproximou da mesa:
— “Então o que ele quis dizer deixando o sobrevivente vivo?”
Olhei pra ela.
— “Que eu estou atrasada. Que ele já está na próxima jogada.”
Parei. O silêncio caiu sobre a sala.
— “E se meu cálculo estiver certo… o próximo assassinato vai acontecer hoje.”
—
📟 BEEP BEEP BEEP — O alerta no computador de Theo explodiu no mesmo instante.
— “Temos uma ocorrência!” — ele disse, os olhos arregalados — “Polícia local reporta: mulher encontrada morta em casa, mesmo símbolo da espiral no espelho. Local: distrito de Hamilton.”
Cruz já estava pegando o casaco.
Camila checou a pistola.
Leon abriu o mapa tático.
Theo iniciou a transmissão de dados.
Eu apenas… sorri.
Como se já soubesse.
— “Vamos?” — perguntei.
Cruz me olhou com atenção. Um segundo de hesitação, depois assentiu.
— “Vamos.”
—
Descemos juntos. Cinco vultos caminhando rápido pelos corredores do hospital. Os enfermeiros desviavam. Os médicos observavam com curiosidade.
Eu estava entre eles. Não como paciente. Mas como peça central.
Na van do FBI, o painel digital atualizava em tempo real.
Theo passou os dados para a tela central.
— “Mulher, 31 anos. Enfermeira. Morava sozinha. Porta da frente trancada por dentro. Nenhuma testemunha. Nenhuma digital.”
— “Mas uma espiral no espelho?” — perguntei.
— “Sim. Com sangue. Da vítima.”
Inclinei a cabeça, absorvendo.
Leon dirigia. Camila monitorava o GPS com mão firme.
Cruz, ao meu lado, virou levemente para mim:
— “Você disse que ele queria te levar até ele. Então por que seguir matando?”
Olhei pra ela.
Firme. Sem piscar.
— “Porque ele não quer que eu chegue fácil. Ele quer que eu mereça chegar.”
—
E eu vou.
Por cima dos corpos que ele deixar.
Pelas verdades que ele enterrar.
Esse jogo termina comigo.
E eu nunca perco um jogo mental.
A van do FBI parou em frente à casa. Um sobrado simples, cercado por fita amarela da perícia. Vizinhos atrás das janelas. Um ou outro jornalista forçando a aproximação.
Leon e Camila saíram primeiro, indo direto para os policiais locais.
Cruz parou na minha frente antes que eu descesse.
— “Você espera aqui fora.”
Pisquei. Devagar.
— “Desculpa. O quê?”
— “Você ouviu.” — ela disse firme, o blazer balançando com o vento — “Sou responsável por você. Não tem ordem oficial liberando sua entrada ainda.”
— “Sou consultora, não prisioneira.” — minha voz ainda calma.
— “Sou a única coisa entre você e uma cela se fizer algo errado.”
— “E você acha que vai me parar?”
Ela respirou fundo. Olhou bem nos meus olhos.
— “Acho que você é inteligente o bastante pra não me obrigar a tentar.”
Silêncio.
A tensão entre nós era elétrica.
Depois de alguns segundos, virei o rosto, irritada.
— “Certo. Esperando. Como uma boa civil.”
Cruz assentiu e entrou com os outros.
—
Fiquei parada na calçada. Os olhos no portão. Os braços cruzados. A paciência derretendo como vela.
— “Idiota. Cuidar de mim como se eu fosse um copo de cristal rachado…” — murmurei.
Até que percebi.
📍 Uma silhueta, rápido demais, se afastando por trás da casa vizinha.
Alguém correndo.
Mas não como vizinho curioso.
Corria como quem estava fugindo.
Minha mente disparou antes do corpo.
Me movi.
—
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Atualizado até capítulo 59
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