Capítulo 4 — Dormir na Cama do Inimigo

Valentina olhou para o espelho do banheiro da cobertura de Nicolas, envolta apenas por um roupão macio e branco que deixava os ombros à mostra. Sua pele ainda estava quente do banho, o cabelo úmido, solto, bagunçado. Mas havia algo no reflexo que ela ainda estava aprendendo a reconhecer: liberdade.

Pela primeira vez em anos, não havia obrigações. Não havia rotina. Não havia sorrisos calculados para manter aparências, nem horários rígidos na agenda da esposa perfeita.

Só o som distante da cidade lá fora e o silêncio confortável dentro daquele apartamento.

Ela se aproximou da janela, segurando uma taça de vinho tinto. A vista era brutal: arranha-céus iluminados cortando o céu noturno como cicatrizes de concreto. Um lembrete de que o mundo continuava girando, mesmo quando tudo dentro dela parecia estar se reorganizando.

A porta do quarto se abriu devagar.

— Está confortável? — Nicolas perguntou, encostado no batente, vestindo apenas uma calça de moletom escura e uma camiseta simples. A aparência relaxada contrastava com o olhar atento. Ele era o tipo de homem que nunca deixava de observar.

— Sim — ela respondeu, virando-se de lado. — Melhor do que eu imaginava.

— Isso é um elogio ou uma crítica ao seu marido?

— Os dois.

Ele sorriu, caminhando até o bar e servindo-se de mais uma dose de whisky.

— Você não precisa dormir aqui se não quiser. Pode ir embora quando quiser. Não temos contrato, lembra?

— Eu sei. Mas eu quero.

Ela se sentou na poltrona, cruzando as pernas. O roupão abriu sutilmente, revelando mais da pele das coxas. Nicolas percebeu, mas não reagiu. Ou, melhor dizendo, reagiu apenas com os olhos. E ela viu.

— Nicolas… — ela começou, olhando para o vinho — você já se sentiu como se estivesse vivendo uma vida emprestada?

— Todos os dias, até os vinte e nove. Depois disso, comecei a devolver tudo que me impuseram.

— Eu tenho trinta e dois — ela disse, sorrindo. — E ainda estou devolvendo.

Ele se aproximou devagar, sentando-se no sofá diante dela. Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos. Um silêncio que dizia muito.

— Sabe o que me assusta? — ela continuou. — Não é dormir na cama de um homem que meu marido odeia. É dormir em paz depois de tanto tempo.

— E você vai dormir em paz aqui?

Ela olhou para ele.

— Talvez não hoje. Mas estou mais perto disso do que estive nos últimos dez anos.

Ele se levantou, caminhou até ela e estendeu a mão.

— Vem. A cama é enorme. E o lençol é novo.

Ela segurou a mão dele. E foi.

O quarto era amplo, moderno, mas tinha traços de personalidade. Livros empilhados na mesa lateral. Um relógio de bolso antigo em cima da cômoda. Uma fotografia em preto e branco de uma mulher que parecia sua mãe — ou talvez uma lembrança que ele mantinha por vaidade, ou dor.

Valentina se deitou do lado esquerdo da cama. Nicolas apagou as luzes e deitou ao lado dela, sem se aproximar mais do que o necessário. O silêncio entre eles não era desconfortável — era carregado.

Ela virou o rosto para ele.

— Você sempre foi assim?

— Assim como?

— Misterioso. Calado. Com esse ar de perigo controlado.

Ele sorriu no escuro.

— Isso é charme ou crítica?

— É o tipo de coisa que atrai e assusta ao mesmo tempo.

— E você sempre foi assim? Frágil por fora, mas cheia de espinhos por dentro?

Ela se virou de lado, o rosto agora perto do dele.

— Não. Antes, eu era só frágil mesmo.

Ele não respondeu. Mas, pela primeira vez, estendeu o braço e a puxou para perto. Devagar. Sem pressa. Como se não estivesse seduzindo — apenas acolhendo.

Ela pousou a cabeça no peito dele e ouviu o som do coração. Era forte, constante. Real.

— Eu não vou me apaixonar por você, Nicolas.

— Ótimo. Porque eu também não vou me apaixonar por você.

Eles sabiam que estavam mentindo.

Enquanto isso, do outro lado da cidade, Arthur estava no apartamento da amante. Sentado no sofá, com um copo de uísque pela metade, e o telefone na mão. Nenhuma mensagem de Valentina. Nenhuma ligação. Nenhuma cobrança.

E era isso que o incomodava.

Isadora tentava conversar, puxava assuntos fúteis sobre uma viagem para Búzios ou um evento de moda, mas ele mal a ouvia.

— Arthur? — ela chamou.

— O que foi?

— Você está estranho. Já faz dias.

— Eu só estou cansado.

Mas não era cansaço. Era o vazio. A ausência de controle. A ausência de Valentina.

Ela sempre tinha sido previsível. Organizada. Sempre esperando por ele. Agora… estava em outro lugar. Com outro homem. E não era qualquer homem. Era Nicolas Montenegro.

Arthur apertou os olhos. Sabia que Valentina estava dormindo com ele. Sentia. Aquilo queimava mais do que a traição dele próprio.

Porque, com Isadora, ele tinha traído. Mas Valentina… ela estava escolhendo outra vida.

E isso era pior.

Às três da manhã, Valentina acordou com os braços de Nicolas ainda ao redor dela. A luz da cidade entrava pelas frestas das cortinas. Ela o observou dormir, por um instante.

Ele parecia mais jovem assim. Menos ameaçador. Havia algo vulnerável no jeito como a testa dele franzia levemente, como se mesmo dormindo estivesse tentando manter o controle de tudo.

Ela se virou devagar, pegou o celular e tirou uma foto dos dois. Não para postar. Não para provocar. Apenas para si. Para lembrar.

Valentina despertou novamente pouco antes do amanhecer. Não havia pesadelos, nem sobressaltos. Apenas o desconforto sutil de estar em um território novo, ainda que não fosse hostil. Nicolas continuava dormindo, mas agora havia se virado de costas, como se inconscientemente também sentisse a presença dela.

Ela se levantou com cuidado para não acordá-lo e caminhou até a sacada. A cidade ainda estava adormecida, exceto por uns poucos carros passando, faróis cortando a escuridão, e os primeiros pássaros rompendo o silêncio. O céu começava a clarear em tons suaves de azul e laranja.

Ali, sozinha, ela se perguntou:

"O que eu estou fazendo?"

Mas a pergunta veio sem culpa. Era uma constatação, não um arrependimento.

Ela não estava apenas revidando uma traição — estava descobrindo sua própria pele. Uma que não servia mais aos moldes do casamento tradicional, das aparências, da esposa modelo. Aquilo tinha se tornado uma prisão invisível. E agora, mesmo sem saber para onde estava indo, ela se recusava a voltar.

— Está fugindo? — A voz de Nicolas surgiu atrás dela, rouca e baixa.

Valentina sorriu sem se virar.

— Eu sou a última pessoa que deveria fugir agora, não acha?

Ele se aproximou e ficou ao lado dela. Deu uma olhada na cidade acordando, depois nela.

— Não precisa se explicar.

— Não estou tentando — ela disse, olhando-o nos olhos. — Só estou tentando entender.

— Você quer que eu me afaste? — ele perguntou, sério.

Ela ficou em silêncio. Depois respondeu:

— Não.

— Isso é uma má ideia — ele disse, com a honestidade brutal que lhe era típica. — Você sabe que é.

— E ainda assim...

— Ainda assim — ele repetiu, e sem dizer mais nada, encostou a testa na dela.

Por alguns segundos, eles permaneceram ali: sem beijo, sem promessas, sem palavras. Apenas o contato. A respiração dele tocando a dela. Uma pausa dentro do furacão.

Quando se afastaram, ela quebrou o clima com um sorrisinho.

— Aposto que você nunca imaginou dormir com a esposa do seu maior inimigo.

— Aposto que seu marido nunca imaginou que você ia gostar tanto.

Ela riu, apesar de si mesma. Nicolas era afiado, mas não era cruel. Ele dizia verdades como quem joga fósforo em gasolina — mas sempre de forma controlada. Isso a fascinava.

Horas depois, já vestida com uma camisa social dele e tomando café na bancada da cozinha, Valentina digitava algo no celular quando recebeu uma mensagem de Arthur:

Arthur: “Preciso falar com você. Agora. Em casa.”

Ela nem pensou duas vezes antes de responder:

Valentina: “Hoje não. Meu namorado acordou inseguro de novo.”

A resposta veio em segundos:

Arthur: “Valentina, não brinque com isso. Já está passando dos limites.”

Ela deixou o celular de lado, deu um gole no café e murmurou para si:

— Não estou brincando. Você que começou esse jogo achando que eu não sabia jogar.

Nicolas entrou na cozinha, já com o rosto molhado de água fria e o cabelo bagunçado.

— A sua pose de mulher fria combina com você de manhã.

— Eu não sou fria. Só não sou mais burra.

— Isso é o que te torna perigosa.

Ela arqueou uma sobrancelha.

— E você gosta de perigo, não é?

Ele não respondeu, mas o sorriso dele foi o suficiente. Não precisava dizer mais nada.

À tarde, Valentina foi até o escritório onde ainda mantinha uma sala — um projeto arquitetônico que havia parado de desenvolver por influência de Arthur. Ele nunca disse diretamente que não queria que ela trabalhasse, mas sempre “sugeriu” que ela deveria focar na casa, na imagem, nas relações sociais.

Ela entrou no local com uma pasta debaixo do braço, a postura firme e o olhar decidido.

A recepcionista arregalou os olhos ao vê-la.

— Senhora Diniz! A senhora está de volta?

— Valentina, por favor. E sim, estou. Tenho contas a pagar e ideias que ficaram tempo demais adormecidas.

Nos dias seguintes, Valentina começou a reconstruir mais do que sua vida amorosa. Reativou contatos, retomou projetos antigos, agendou reuniões. Se reinventava em silêncio, longe dos holofotes que sempre a mostravam como “a esposa do herdeiro”.

Ela agora queria ser conhecida por ser quem era. E não pelo homem ao lado dela — seja Arthur, seja Nicolas.

Naquela noite, enquanto finalizava um rascunho de projeto no tablet, recebeu uma ligação de Nicolas.

— Você sumiu.

— Trabalhei o dia inteiro. Esqueci como isso cansa.

— Quer jantar comigo? Ou vai priorizar planilhas hoje?

— Vou jantar com você. Mas só se puder me ouvir falar sobre iluminação natural e esquadrias metálicas.

— Lido com coisa pior todos os dias em reuniões de conselho. Pode vir.

Ela sorriu.

— Vou levar vinho.

— Eu tenho whisky.

— Então temos um acordo.

Na terceira noite consecutiva que ela dormia com Nicolas, algo mudou.

Não foi o toque — esse já existia.

Não foi o sexo — intenso, honesto, sem jogos.

Foi o silêncio depois. A ausência de necessidade de explicar ou pedir desculpas. O conforto desconcertante de estar com alguém que não esperava nada além da verdade.

Ela deitou de costas, exausta e satisfeita, e Nicolas, por instinto, entrelaçou os dedos nos dela.

— Ainda não vamos nos apaixonar, certo? — ele murmurou.

— Ainda não — ela respondeu.

Mas ambos sabiam: ainda era só uma desculpa que estavam dispostos a acreditar por mais um tempo.

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Comments

Sandra Queiroz

Sandra Queiroz

uma mulher forte e com personalidade forte andam sempre juntas!!!!

2025-07-04

1

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