A indignação de Leonor com o síndico do prédio teve que ser silenciosa. Ela quis chorar. Não podia simplesmente dizer alguma coisa ruim. Ainda morava lá de certa forma e nem estava pagando o aluguel. O que poderia fazer nessas condições? Tinha perdido o emprego, o plano era se suicidar e não conseguiu cumprí-lo. Agora voltou lá e com um garoto da idade dos alunos. Quem não ia achar estranho? Ela disse que não tinha irmãos, porque não teve irmãos… teve basicamente filhos. Tendo que ser a mãe dos irmãos mais novos que dependiam dela. O pai um bêbado que só colocava comida na mesa, mas sumia por tempos. Leonor cuidava da casa, mantinha o pai equilibrado e sóbrio para visitas da assistente social e impediu os irmãos de serem separados e levados para lares adotivos.
Ela nunca foi a irmã deles. E eles a chamavam mesmo de mãe. E a viam como mãe. Mas eles saíram de Hellgate e tomaram um rumo na vida. Leonor foi a única que ficou.
— Você vai pagar o aluguel atrasado, Leonor? — A voz antes gentil de Carter agora soava ameaçadora. — Se não pagar, vou ter que envolver a polícia... e eles vão investigar esse seu caso com esse moleque que quer bancar o galo, mas é só um franguinho...
Caim imediatamente tomou a frente de Leonor, colocando-a atrás de si em um gesto protetor. Estudou Carter com atenção e lhe lançou um sorrisinho maldoso que fez Leonor estremecer. Ela soube, não sabia como, que aquele homem apareceria morto. Sentiu isso com clareza. Como uma certeza inevitável de um destino selado.
— Eu vou pagar o aluguel dela. Diga quanto é. E não troque mais nenhuma palavra com a minha mulher — disse Caim com frieza. — Ela é minha esposa. Não sou um caso dela, nem um fetiche. Ela não é nojenta como você, que gosta de garotinhas ou de gente fraca, fácil de dominar. Nossos caminhos apenas se cruzaram, e fui eu quem a importunou. Por isso, assumi a responsabilidade como um homem de verdade deve fazer.
Leonor corou violentamente, mas não disse nada. Não o desmentiu, mas deveria. Porque a pessoa que a visse com um rapaz com aquele rosto… acharia que ela estava cometendo um ato errado. Inclusive quando foi professora de literatura de adolescentes da faixa etárea de Caim. Se bem que ela não sabia a idade dele.
Viu quando Caim tirou um maço de notas do bolso da calça, bem mais do que os quinhentos dólares que ela devia, e o jogou para Carter.
— Agora some da minha frente, seu merda. Antes que eu arranque a sua cabeça. Porque juro por tudo que estou prestes a separá-la do seu corpo — rosnou Caim, entredentes, sentindo as presas ameaçando surgir pelo ódio que borbulhava dentro de si. As lentes de contato se derreteram pela fúria em seu sangue, desejando trazer o assassino à tona.
Quando o elevador abriu, Caim, sem hesitar, tomou a mão de Leonor e saiu com ela no andar do apartamento, sem olhar para trás.
Caim era tão surpreendentemente maduro. O jeito que ele a protegeu era muito feroz. Nunca um homem agiu assim sem ser para demonstrar ser superior, mas ela notou ser só algo natural dele, aquele senso de proteção a algo frágil, e ela era frágil quando comparada a um ser imortal. Isso não era nem algo discutível.
Quando ela digitou a senha 0134 na trava eletrônica de segurança e destravou a porta do apartamento dela, as bochechas ganharam vermelhidão ao ver as suas roupas espalhadas pelo sofá-cama e a bagunça que era inesperada de uma mulher. As embalagens de comida. A pia cheia de louça.
Ela o sondou, cessando o desespero, quando notou que ele não dava a mínima, como um homem comum daria e a julgaria como péssima dona de casa. Ele parecia não se importar muito. Notou que os olhos dele estavam rubros de novo, um tanto assombrada, quando entraram. Por mais que olhasse, talvez nunca fosse, de fato, se acostumar. Assim como os olhos de vitral verde de Judas. Era muito inumano.
— Você pode sentar no sofá, se quiser. — Ofertou ela, fechando a porta do apartamento pequeno, bem mais tranquila sobre a questão da casa desarrumada.
Ela catou algumas roupas, incluindo sutiã e calcinha, corada, amontoou nas mãos e jogou longe dali. Contudo, Caim parecia mesmo educado demais para reparar a bagunça ou só conhecer mais da humanidade do que ela entendia.
Caim sabia que uma casa desajustada queria dizer uma mente bagunçada, e não necessariamente preguiça. Ela devia ser depressiva, e até as tarefas rotineiras devem ser difíceis para ela.
Ele a estudou, parecendo perdido em pensamentos, mas aceitou a oferta e sentou no simplório sofá creme cujo espaço ela liberou, um móvel que Leonor herdou de uma tia-avó que morreu.
— Eu vou me resolver com Judas antes de te tornar minha serva de sangue. — Afirmou ele de repente.
Leonor o observou, lendo a mentira óbvia na fala dele, ele jamais conseguiria. Ele não precisava fazer aquilo. Ela já havia entendido, mais ou menos, que ele se sentia sozinho e a dinâmica doentia e dependente do relacionamento dele com Judas. Quis só fazer companhia para ele agora, porque ele a salvou de certa forma, e sentia que o devia.
— Não precisa. — Informou ela, calma. — Eu sou só a sua serva de sangue. Não tem que romper com o seu marido por minha causa. — Explicou, suave.
Caim respirou fundo, parecendo tão grato e culpado ao mesmo tempo, que desviou os olhos dos dela.
— É tão mais complexo do que você ser só uma amante. — Lamentou ele, muito contrariado, pelo sorriso mínimo e constrangido que a cedeu, permitindo que os olhos rubros sinistros encontrassem os escuros dela. — Sabe, Leonor… pode não parecer, mas eu já vivi muito… realmente tentei seguir em frente com outras pessoas. Mas nunca consigo, de fato, deixá-lo. É só ele estalar os dedos, e eu volto. Quando eu conheci Judas… Ele foi rejeitado pela própria Morte, por ter traído o Filho de Deus… a história da Bíblia, mas não toda. Sei que é horrível, mas me senti tão aliviado de ter outro igual a mim… — Revelou, e Leonor moveu a cabeça num sim, de que entendia tudo. — Na época, ele tinha o cabelo escuro e a barba longa, como os judeus. — Riu Caim. — Mesmo assim, o achei deslumbrante.
***Faça o download do NovelToon para desfrutar de uma experiência de leitura melhor!***
Atualizado até capítulo 29
Comments