A Saga dos Amaldiçoados: LAÇOS ETERNOS

A Saga dos Amaldiçoados: LAÇOS ETERNOS

Prólogo

O ser sombrio caminhou após se alimentar de dois malfeitores que ele presenciou abusando de duas meninas que disseram “não”. Mesmo assim, os homens, que se tornaram sua refeição, continuaram a desafivelar suas calças e a se forçarem sobre elas.

Seguindo a mesma lógica dos estupradores, que não se detiveram diante dos pedidos de misericórdia das vítimas, o vampiro também drenou o sangue dos dois abusadores em meio aos protestos violentos e aos pedidos por clemência. O que, particularmente, o divertiu. Os que antes achavam ter poder agora estavam reduzidos aos vermes patéticos que realmente eram. O vampiro, então, jogou os corpos em uma lata de lixo metálica, grande o suficiente para escondê-los.

Andar, flutuar e se materializar entre os mortais sempre foi desconfortável para ele. Longe o suficiente das pessoas, ele tirou as lentes de contato que escondiam seus olhos vermelhos. Naquela estrada de terra, nenhuma alma viva deveria estar. Mas ele estava enganado.

Com sua visão privilegiada, viu uma garota prestes a se jogar da temida ponte onde, segundo a lenda da cidade, as vozes das bruxas que foram afogadas no rio impeliam ao suicídio.

Geralmente, ele não teria interesse por humanos que cometiam suicídio. A mulher de meia-idade não era uma beleza que o mundo lamentaria perder. No entanto, naquela noite em particular, ele estava se sentindo sozinho e queria alguém, e aconteceu de ser ela. Então, se a vida dela não importava para ela, para ele, poderia ser útil.

Com a velocidade que o tornava um borrão e vulto aos olhos mortais, ele segurou a mão dela antes que ela caísse nas águas escuras do Rio das Almas, como era conhecido aquele lugar de Hellgate. Ele a puxou de volta, passou-a pela proteção da ponte sem nenhum esforço, embora a quase suicida estivesse acima do peso, e a observou. Agora, a vida dela era dele. E ela, também.

Havia ódio nos olhos castanhos-escuros dela, não gratidão.

— Eu sei que você queria acabar com tudo, mas agora eu te dou a chance de me servir, mulher — Caim soltou, como se servi-lo fosse algum tipo de honra.

Leonor olhou para ele de forma assassina, semicerrando os olhos e franzindo os lábios, colérica pela audácia do maldito.

— É uma grande honra servi-lo... — zombou, sarcástica. — Quem você seria...? A maldita Morte?

— Algo entre a morte e a vida, sim — Caim respondeu. — Um meio-termo? — Quando disse isso, pareceu duvidoso.

O belo vampiro encolheu os ombros, também parecendo confuso e franzindo a testa, mas seu lindo rosto era liso como se fosse esculpido em pedra. Seus olhos vermelhos, porém, deixavam transparecer o questionamento interno. Ele nem tinha barba. Era um menino, não aparentava mais de dezessete anos, Leonor pensou, atordoada. Ela tinha trinta e quatro.

Já Caim... ninguém nunca o questionava por agir como a Morte. Ele foi a morte dos mortais que drenou para satisfazer sua fome, e a de Abel, há muito tempo. Por isso foi conhecido como o primeiro homicida. Mas nunca parou para pensar sobre ser, de fato, a Morte.

Foi só então que a raiva de Leonor deu lugar à surpresa profunda, ao ser confrontada com o extraordinário. Sim, a pele daquele ser brilhava. Ele parecia esculpido em gesso. Uma estátua que se move. Um eco de humano. Seus olhos reluziam como rubis sob a luz. Os cabelos eram longos e escuros. Usava jaqueta de couro, camisa preta, calça preta e coturnos. Algo muito etéreo, ou demoníaco ao extremo, dependendo do ponto de vista.

— Mulher, você tem marido, filhos ou família? — Caim perguntou de repente. Se ela tivesse, ele já decidira que os mataria, para tomá-la como companheira.

Ele queria que ela respondesse que não, porque aquela fêmea o fazia sentir calor. E agora, no entendimento dele, a vida dela era dele, pois ele a encontrou abrindo mão dela — e lhe deu uma segunda chance.

Leonor balançou a cabeça em negação, ainda atordoada por haver algo além. Ela pensou em correr. Mas, se ele fosse algo além de um humano — e com certeza era —, definitivamente a alcançaria.

— Por que você se jogou da ponte, mulher? As almas das bruxas te obrigaram? — Caim perguntou, inclinando a cabeça para o lado, como se realmente tentasse entendê-la. Ela balbuciou algo sobre estar cansada, nada coerente.

Ele tomou a palavra:

— Se as bruxas nada têm com isso… fique ciente de que a Morte é uma cadela impiedosa com os suicidas. Hella, um dos nomes que a Morte usa, vai colocar você para trabalhar como louca, como uma ceifeira, se você se suicidar. Se está tão cansada como diz, seu pós-morte vai ser um real inferno — e nem falo do inferno literal.

Leonor ergueu as sobrancelhas. Morrer parecia tão certo antes. Por que mesmo ela queria ir para um país desconhecido do qual nenhum viajante jamais retornou, como disse Shakespeare? Qual era o motivo do ímpeto? O empréstimo estudantil? A falta de dinheiro? O peso esmagador da vida adulta? Não ter filhos, casa própria, emprego digno, casamento ou independência financeira? Se sentir deslocada do mundo? Falta de propósito? Ela já não sabia.

— Se eu me tornar sua serva, você me dará dinheiro? — perguntou, honestamente. A brisa noturna fazia seus cabelos castanhos, com algumas mechas grisalhas, voarem.

Caim encolheu os ombros.

— Eu sou muito rico, mulher. Se vier comigo, o que é meu será seu — respondeu, contemplando-a e querendo impressioná-la, como nos tempos antigos em que um homem oferecia seus bens à mulher ao pedi-la em casamento. — Se é de dinheiro que precisa, posso ajudá-la. Mas, em troca, quero sua companhia e, às vezes, seu sangue.

— Você não vai me matar? — Leonor sondou.

— Se eu quisesse você morta, simplesmente não teria entrado em contato com você — respondeu com frieza. Mas era só seu modo habitual. Há tempos não tinha contato com um humano que o atraísse. Não sabia mais como conversar.

— Eu sou mais velha que você. Pelo menos na aparência — disse ela, limpando a garganta, pois sabia que ele não era humano. — No mundo de hoje... quero dizer, eu vou te servir, mas... você... sua namorada não vai se importar que tenha uma mulher te servindo ou algo assim...?

— Namorado — corrigiu ele, desinteressado na superficial diferença de idade, já que era milênios mais velho que aquela fêmea. — Mas nos separamos. Seguimos caminhos diferentes, até conseguirmos nos suportar novamente. O que vocês mortais chamam de “dar um tempo”. Pode ser décadas, séculos... um relacionamento é diferente para um imortal.

— Ah... você é gay? — Leonor soltou, aliviada, e se acalmou.

Caim a estudou. Deu um meio sorriso incompreensível. Aquela humana estava com medo de que ele quisesse sexo. Ele leu em seu rosto que ela queria que a resposta fosse “sim”. Mas, quando se é imortal... tudo no mundo já foi tentado. Homens, mulheres, os que não se definem... absolutamente tudo.

— Sim, sou gay — respondeu, mais para acalmá-la. Não era uma verdade absoluta. Mas também não era uma mentira.

Ele quis dizer: “Mulher, eu te quero como companheira agora, e posso cuidar de você.” Mas, por algum motivo, sabia que não era mais assim que as coisas funcionavam no mundo humano.

— Eu meio que fui despejada da minha casa... — ela admitiu, com as bochechas corada.

Respirou fundo, o avaliando.

— Você é minha serva de sangue agora. Pode ficar na minha casa — ele ofereceu, estudando-a.

Os olhos castanhos dela se encheram de gratidão silenciosa. Certo. A havia conquistado, então. Bom. Percebeu que um dos motivos pelos quais ela queria pular da ponte era a falta de dinheiro. Isso, ele podia resolver. Desde que ela fosse dele. Como ela não tinha nada que a prendesse ao mundo humano, bem... ela era totalmente dele agora.

— Vamos, vamos — ele a chamou, contra a brisa fria da noite. Tirou a jaqueta que usava, e da qual nem precisava,  e a colocou sobre os ombros dela. — Está frio. Não quero que pegue um resfriado. E o sol vai nascer logo. Preciso ir até o caixão.

— Ah, então... os caixões e o sol... — ela tocou no assunto, um tanto taciturna, enquanto caminhava ao lado dele, ainda desconfiada.

Caim a estudou pacientemente. Ele gostava dela, profundamente. As rugas suaves no rosto dela e alguns fios grisalhos não significavam nada. Havia algo de fascinante nela. Seu olhar era claro e sincero, apesar da escuridão em seus olhos. A mesma escuridão à qual ele foi condenado para sempre, pelo pecado que cometeu há quase cinco mil anos. Mas, de alguma forma, ela brilhava como o sol.

— É verdade, essa parte dos mitos. Os caixões são uma necessidade. E o sol me machuca. Mas tenho um lugar que você nunca encontrará, onde durmo durante o dia. Agora, você deve aprender a trocar o dia pela noite, serva — alertou Caim. — Suas noites são minhas agora. E eu te pago o que você precisar por isso.

— Soa justo — Leonor disse. Nunca imaginou que seria uma prostituta, mas era melhor do que passar fome.

Os dois caminharam juntos pela estrada escura da noite eterna. Para ele, já estavam casados. Mas, claro, ela não sabia disso.

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