Ecos de um amor dolorido

Ela abriu e fechou a boca, sem voz. Cogitou várias vezes o que dizer para consolar Caim depois que o marido dele se foi. Contudo, parecia não ser um problema seu. Mas o ser parecia tão desolado com aquela visita,  e com o abandono repentino,  que isso lhe causou certa angústia, principalmente pela forma como ele ficou olhando para o portão por onde Judas saíra há vários minutos, com os olhos de um cãozinho abandonado na beira da estrada.

 Lágrimas de sangue desceram pelo rosto dele, mas ele as limpou rapidamente, soltando um suspiro.

— Droga — murmurou. — Esse filho da puta aparece quando quer e me assombra como um fantasma... Sempre quando penso que posso ser feliz com alguém que não seja ele, seguir em frente com a nossa história conturbada...

Ela suspirou, tomada de piedade. Leonor nunca teve um namorado, mas era uma fã incurável de filmes de romance. Seu favorito era um filme filosófico e triste: Titanic. E, por algum motivo, aquele casal que se desenrolava à sua frente parecia carregar a mesma vibe trágica. A diferença é que o iceberg que os separou era o próprio companheiro de Caim.

Pensou em ir até ele e abraçá-lo. Caim a estudou com um leve sorriso, como se pudesse ler aquele pensamento, e, de algum modo, talvez pudesse.

— Estou bem — constatou  ele. — Só dói sempre que ele faz isso. Mas já estou acostumado. É só uma cicatriz antiga que abriu de novo... logo volta a ser cicatriz.

Até que o estômago dela roncou, quebrando a seriedade do momento. Caim se virou para ela com um sorriso de lado, como se toda a dor anterior tivesse evaporado. Ele parecia esquecer o abandono de Judas ao se concentrar nela.

Sim, agora não estava mais sozinho. E prometera cuidar da sua nova companhia. Ia mesmo cuidar dela. Judas o deixava por anos e exigia fidelidade. Quem sabia o que Judas fazia durante esses “tempos” que tiravam? E agora ele se sentia no direito de se incomodar porque Caim arranjou alguém? Injusto.

Estava cansado daquela instabilidade. Leonor parecia alguém estável o suficiente.

Caim surgiu diante dela, quebrou a distância entre os dois e a abraçou, repousando o rosto no pescoço dela. Sentiu os dedos dela em seu cabelo, um gesto de consolo suave e meigo. Estável. O tipo de pessoa que permanecia. E ele conhecia bem esse tipo. Ele mesmo era o tipo que ficava.

Entre ele e Judas havia um desejo desenfreado, uma paixão doentia. Mas, depois de anos na incerteza, aquele abraço acolhedor parecia certo, mesmo sem os fios eletrizantes da paixão destrutiva que tinha pelo outro condenado com quem compartilhava a eternidade.

— Eu quero ir ao meu apartamento buscar minhas coisas... se você não se importar. Tenho comida lá também. Posso comer algo — disse Leonor, ainda com os braços em torno dele, os dedos acariciando seus cabelos escuros. O consolo que daria a um aluno dela que precisasse.

— Claro. O que você quiser — concordou Caim.

A primeira coisa que Leonor ouviu ao chegar com Caim ao prédio onde morava foi a voz do síndico:

— Não sabia que você tinha um filho, Leonor.

Ela semicerrou os dentes e fechou as mãos em punho. Dominada por aquela sensação de ouvir algo completamente desnecessário, ainda mais em voz alta. Era o que sentia naquele instante. Igual aos jantares de Natal em que a família cobrava namorado, casamento, filhos... até que ela simplesmente parou de ir para preservar sua sanidade.

Teve vontade de gritar:

“Por acaso você sabe o que essa coisa que se finge de homem é? Há quanto tempo ele caminha pelo mundo? Ele só pode ser meu filho e não meu amante, é isso? Eu não alicio menores de idade, seu maldito! Essa criatura já nem está mais na escala moral humana, sabia disso? Pare de me olhar como se eu fosse uma pedófila nojenta. Eu não estou transando com ele!”

Esses pensamentos gritavam em sua mente, mas ela se forçou a sorrir e se calar, para não dar uma resposta grosseira a uma pergunta imbecil.

— Certo... — foi tudo o que conseguiu responder.

Caim ficou muito confuso. Ele não era filho dela. Não queria ser. Era o marido dela. Claro, não tinha se divorciado de Judas de vez, mas...

Usava lentes de contato pretas que derretiam a cada meia hora e precisavam ser trocadas para não chamar atenção entre os humanos. Parecia um jovem de dezessete anos, com feições ainda pueris ou andróginas, como muitos astros do rock. Era essa a imagem que passava.

Quando entrou no elevador com Leonor e o síndico, que apertou o botão do terceiro andar, Caim o fitou diretamente.

— Não sou filho dela — afirmou, com o sangue fervendo, indiferente à presença do homem que julgava Leonor profundamente por andar com um adolescente.

“Ela transa com meninos? Eu deveria denunciar isso? Uma mulher mais velha com um moleque desses... nojenta. Que horror.”

Caim recebeu um olhar de alerta de Leonor, que ele simplesmente ignorou. Ela não sabia o que Carter pensava, mas Caim sabia. Era hora de colocar as coisas no lugar. Quando salvou a vida dela, assumiu a responsabilidade. Nunca a deixaria enquanto respirasse. Sempre a protegeria. Afinal, por que a teria salvo, se não fosse para zelar por ela?

— Sobrinho então? — insistiu o homem, fingindo interesse descompromissado.

Caim sabia que ele desejava Leonor e agora jogava, tentando pegá-la em alguma fala comprometedora.

— É... por aí...

— Mas você disse que não tinha irmãos — afirmou o loiro, apertando o cerco.

— O que eu sou ou não dela seria da sua conta por qual motivo? — rebateu Caim, ríspido, arqueando a sobrancelha. — Que eu saiba, ela é uma mulher livre. E, por mais que não pareça, já sou maior de idade. Quer ver minha identidade?

— É que ela nunca trouxe um namorado aqui... e você é jovem demais para ela, não acha? Ela precisa de alguém estável e...

— Alguém estável como você, Carter? — cortou Caim, impaciente e com um tom homicida.

O síndico empalideceu pelo modo como o nome foi dito. Leonor ficou assombrada que Caim soubesse o nome dele, ela nunca o dissera.

— Você finge ser gentil, mas seus pensamentos sobre ela são sujos, pervertidos... num nível nojento. Você quase ofereceu que ela pagasse o aluguel com o corpo, naquele seu quarto imundo. Só não o fez por medo de ela chamar a polícia. Ia se aproveitar do desespero dela para humilhá-la e se sentir mais homem. Me poupe do seu falso moralismo, seu hipócrita de merda. Escória! Humanos como você, que fingem ser gentis, mas são piores que porcos, me enojam!

Leonor estava atordoada. Parecia que uma bomba havia explodido em seus sentidos. Apenas estudou Caim. Pelo modo como Carter empalideceu, soube que tudo o que ele dizia era verdade. Talvez Caim pudesse ler pensamentos. Estava enojada com Carter. Agora fazia sentido o modo como ele sempre sondava se ela tinha um homem em casa.

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Comments

Pamella Pampam

Pamella Pampam

Caim protetor? gostei disso

2025-07-11

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