O Gesto que Ele Nunca Vai Notar

Acordei naquela manhã com uma vontade estranha de vê-lo.

Não era saudade. Era mais profundo. Era como um fio invisível me puxando em direção a ele — talvez uma última tentativa da minha alma de lembrar ao meu corpo que ele ainda existia, que ainda havia um “nós” em algum lugar da memória.

Fiz o prato preferido dele. Com cuidado, como fazia nos primeiros meses do nosso casamento, quando cozinhava usando o avental com nosso nome bordado. Ainda me lembro de quando ele dizia que meu tempero era melhor do que qualquer restaurante caro. Aquilo me fazia sorrir por dentro.

Eu não comia mais quase nada. O corpo já não aceitava. Mas cozinhar para ele me dava um estranho alívio. Uma forma de me manter útil. Presente. Vista.

Peguei a comida, coloquei numa embalagem térmica, e decidi ir até o escritório dele. Não liguei. Não avisei. Queria que fosse surpresa. Uma simples entrega de afeto. Pequena, mas sincera.

Na minha cabeça, imaginei ele sorrindo ao me ver. Imaginei seus olhos se iluminando, sua expressão surpresa — talvez até um abraço apertado, um “você não precisava ter vindo, mas que bom que veio”.

Sim, eu ainda sonhava.

Cheguei ao prédio sem dificuldade. A recepcionista me reconheceu de imediato e sorriu.

— Dona Clara, pode subir. O doutor Henrico está na sala 1204, com visita agendada. Não vai demorar.

Assenti com um sorriso discreto. Entrei no elevador e respirei fundo, como quem segura a si mesma antes do mergulho.

Mas nada me prepararia para o que eu veria ao abrir aquela porta.

Ela não estava trancada. Estava apenas encostada. Um descuido. Um sinal. Um aviso.

Empurrei com cuidado, a embalagem ainda nas mãos, e dei dois passos para dentro.

E então parei.

O tempo parou comigo.

Henrico estava encostado à mesa, com as mãos nos quadris dela. Sabrina ria de alguma coisa, os olhos brilhando, a blusa levantada revelando a barriga já saliente. Um teste de gravidez repousava sobre a mesa. Um segundo, talvez. Como se quisessem repetir o milagre. Confirmar que a vida ali era mesmo real.

— São dois risquinhos — ela disse, animada. — Você vai mesmo ser pai.

Henrico sorriu. Um sorriso cheio. Orgulhoso. Feliz.

Ele a abraçou por trás, beijando o pescoço dela. E ali, naquele gesto, eu vi tudo o que ele nunca mais me deu. Tudo que me foi tirado sem que eu percebesse. Toda a parte dele que nunca mais seria minha.

Segurei a respiração.

O barulho de passos teria me entregado. A porta ainda meio aberta. Mas eles não me viram.

Eu poderia entrar. Poderia gritar. Poderia atirar aquela comida no chão, quebrar tudo, perguntar como ele pôde fazer isso comigo. Como ele teve coragem de sorrir enquanto eu morria.

Mas não fiz nada disso.

A dor me paralisou, mas também me silenciou.

Dei um passo para trás. Saí da sala com o mesmo cuidado com que entrei. Fechei a porta devagar. E ali, ao lado da moldura de madeira, deixei o pacote com a comida.

Ele encontraria mais tarde. Talvez pensasse que foi a secretária. Ou que alguma cliente trouxe. Ou talvez soubesse que fui eu.

Mas não importava.

A partir dali, eu não seria mais a esposa que esperava.

Eu seria a mulher que escrevia.

A mulher que via.

A mulher que lembraria.

Fui embora sem olhar para trás.

À noite, escrevi minha segunda carta.

“Carta 2

Para o homem que me matou,

Hoje, eu vi o seu sorriso.

Não aquele que você me deu no dia do nosso casamento. Nem o que você usava quando falava sobre os nossos planos. Eu vi um sorriso novo. Um que não me pertencia. Um que nunca pertenceu.

Ela te deu dois risquinhos.

Eu te dei uma vida.

Ela te deu um teste.

Eu te dei a chance de respirar.

Ela te deu um filho.

E eu… dei o tempo que me restava.

E você sorriu. Para ela.

Como se nada mais importasse.

Hoje, eu entendi o que significa morrer em silêncio.

É quando o coração para de tentar gritar.

É quando você olha para o homem que amou e percebe que ele não existe mais.

Você me perdeu.

Não porque eu parti.

Mas porque você me deixou antes disso.

Clara.”

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Comments

Marisa Sampaio

Marisa Sampaio

Nossa que história triste mais que chama a atenção.

2025-07-01

2

bete 💗

bete 💗

❤️❤️❤️❤️❤️

2025-07-03

0

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